sexta-feira, 23 de junho de 2017

Uma evocação do Prof. Marques de Almeida (1936-2017)

             Poderá parecer estranho que seja um catedrático de História da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra a ousar fazer aqui uma evocação da vida e da obra do Prof. António Augusto Marques de Almeida, que ontem (15 de Abril) nos deixou e cujas exéquias vão realizar-se daqui a escassas horas. É que a sua personalidade me marcou profundamente no pouco tempo que tive para privar com ele.
            Participámos ambos, por nomeação ministerial, no ano lectivo de 2000-2001, na Comissão de Avaliação Externa dos Cursos de História, criada no seio da CNAVES. Couberam-me as funções de vice-presidente e, nessa condição, presidi às Subcomissões de Arqueologia e de História da Arte. Tínhamos, porém, muitas reuniões em comum, foi esse um ano cheio, como alguns recordarão, e Marques de Almeida exercia então as funções de vice-reitor da Universidade de Lisboa. E fiquei, desde o primeiro momento, amigo de Marques de Almeida, pela sua bonomia, ponderação, seu perspicaz mas compreensível espírito crítico. Creio que – também graças a todos os seus valiosos contributos – fizemos um bom trabalho e, desde então, qualquer encontro com Marques de Almeida era uma festa, pela Amizade que nos unia, pelas recordações interessantes que esse convívio na Comissão de Avaliação Externa nos proporcionara.
            Perdi, de facto, um Amigo. E a comunidade científica portuguesa recordará nele, estou certo, o investigador probo da época dos Descobrimentos, nomeadamente no que se refere às transacções e às motivações económicas.
            O Departamento de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa publicou, em 2006, por ocasião da sua jubilação (em Maio de 2005), o livro Rumos e Escrita da História (Estudos em Homenagem a A. A. Marques de Almeida), que teve a coordenação da Prof.ª Maria de Fátima Reis, uma publicação de Edições Colibri. Para ele, obviamente, remeto, porque nele se terá uma ideia mais precisa do que foi o seu labor. Aliás, salienta-se, na apresentação da obra:
            «Em vinte e seis anos de persistente labor, António Marques de Almeida desenvolveu uma actividade intensa e fecunda na sua Escola, como docente, investigador e administrador É indelével a forma como transmitiu a sucessivas gerações de estudantes, de licenciatura, pós-graduação, mestrado e doutoramento, as exigências de matematização do real e o rigor da metodologia científica, seja em cadeiras de Teoria e Método, ou em disciplinas da sua especialidade, História Moderna (Economia e Sociedade) e História da Ciência».
            Permita-se-me, porém, que cite alguns dos seus trabalhos:
            Os livros de aritmética (1519-1679): subsídios para a história da mentalidade moderna em Portugal, Universidade de Lisboa, 1989.
           Capitais e Capitalistas no Comércio da Especiaria. O eixo Lisboa ‒ Antuérpia (1501-1549): Aproximação a um Estudo de Geofinança. Edições Cosmos, Abril de 1993.
           Aritmética como descrição do real, 1519-1679: contributos para a formação da mentalidade moderna em Portugal, 2 vols., Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1994..
            – «A matemática em Portugal (séculos XV-XVI) e as suas fontes italianas: a difusão do paradigma», Arquipélago. História, 2ª série, vol. 1, nº 1 (1995): 105-121.
            Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses: Corpo Prosopográfico de Mercadores e Gente de trato. Lisboa, Campo da Comunicação, 2009 (que teve tradução inglesa: Historical Dictionary on Portuguese Sephardim: A prosopography of men of culture and science).
            E não resisto a transcrever, com a devida vénia, parte do testemunho que o Doutor Santiago Macias, presidente da Câmara de Moura, escreve hoje no seu blogue “Avenida da Salúquia 34”:
            «Foi meu professor de Matemática para as Ciências Sociais e Humanas no ano lectivo de 1981/82. A primeira aula foi no dia 7 de Dezembro, na sala 7. Recordo o sorriso meio irónico com que entrou na sala e deparou com a turma, silenciosa e aterrorizada. Matemática?? A cadeira era obrigatória. Com sensibilidade e inteligência, o Prof. Marques de Almeida levou a "coisa" por outros caminhos. Interessou-nos por Bento de Jesus Caraça, pelamatematização do real, pela visão qualitativa e não quantitativa. As aulas eram espaços de liberdade e Marques de Almeida obrigava-nos a improvisar. Uma das componentes obrigatórias era a "apresentação oral". Tínhamos de falar durante 10 ou 15 minutos sobre um tema à nossa escolha. Optei pelo cinema português e pela visão que os estrangeiros colhiam de Portugal através dos filmes. Com aquele pequeno exercício, Marques de Almeida queria que nos disciplinássemos e que puséssemos o cérebro a trabalhar cronometricamente. Lembrei-me do seu austero "tens 10 minutos para terminar" muitas vezes ao longo da vida. Orientou-me nas leituras, obrigou-me a ler o Capitalismo monárquico português, de Manuel Nunes Dias, fez-me trabalhar sobre a feitoria portuguesa de Antuérpia e, sobretudo, ajudou-me. […]
            Coincidências e ironias do destino: doutorei-me, em Lyon, no amphithéâtre Benveniste. O nome de judeu que motivou a criação pela família Benveniste, em 1996, de uma cátedra na Universidade de Lisboa. Primeiro director dessa cátedra? Marques de Almeida.»
            Que descanse, pois, em paz, quem tanto nos legou – pelo saber e pelo exemplo!

                                                                       José d’Encarnação

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