quarta-feira, 17 de julho de 2019

António Salvado – Um escritor compulsivo

            Cruzo-me constantemente com pessoas, de todas as idades, que estão longe do caminho que levam. De auscultadores nos ouvidos, vivem seguramente num outro mundo, o das suas melodias preferidas ou o de afastadas vozes que assim se lhes tornam presentes. Um outro mundo – e não aquele da calçada que pisam, do gritar assustado do melro ou do embater das ondas nas rochas…
            Outro mundo, esse, o do som das aves ou do incessante murmúrio do mar. Mundo real, dos seres vivos, das pessoas… E esse é o do Poeta ou do Escritor, que insiste em fazer parte da comunidade em que vive, do lugar onde habita, do chão que pisa.
            António Salvado apresenta-se-nos como esse alguém capaz de adoptar a sugestão que o filósofo romano Séneca deu a Lucílio (Ad Lucilium Epistulae Morales – 95, 53):
            «Ille versus et in pectore et in ore sit homo sum humani nihil a me alienum puto».
            «Que esteja no coração e na boca aquele verso que diz: «Sou homem e nada do que é humano eu considero alheio a mim!».
            Ouso, por isso, chamar-lhe um escritor compulsivo, porque certamente pratica também aqueloutra sugestão que Plínio-o-Velho (Naturalis Historia, 35) atribuiu a Apeles, o celebrado pintor: «Nulla dies sine linea», que em nenhum dia o Sol se ponha sem que tu tenhas escrito uma linha só que seja!
            Cumpre, pois, de quando em quando, dar conta do que o compulsivo escritor nos vem legando.

Reflexões sobre os museus
            Tendo sido, durante anos, director-conservador do Museu de Francisco Tavares Proença Júnior, dele editou a Sociedade dos Amigos desse Museu o livrinho Museu e Comunidade & Outros Textos, acabado de paginar, lê-se numa das badanas, «no dia 11 de Dezembro de 2018, dia do papa São Dâmaso, poeta e padroeiro dos arqueólogos que a tradição afirma ter nascido em Idanha-a-Velha».
            A apresentação, oportuna e erudita, é de Luís Raposo, que dirigiu o Museu Nacional de Arqueologia. «Museu e Comunidade», de 1977, proclama a necessária relação das instituições museológicas com o ambiente em que existem. António Salvado insiste na necessidade da «salvaguarda dos valores que definem o vasto património da cultura comunitária, regional». E, num momento em que – é o escritor um visionário, por vezes! – a escola-oficina dos tradicionais bordados de Castelo Branco foi extinta no museu, o que se destaca é «a chamada arte artesanal». Aquela ‘ciência’ que o saber ancestral foi condimentando e à qual importa voltar.
            Segue-se o texto de uma ‘conversa’ de 1989 (gostaríamos de saber em que circunstâncias ocorreu, mas o Autor parece resistir a contextos cronológicos e geográficos…). Chamou-lhe, mui sugestivamente, «Museu lição de coisas», porque os objectos expostos, se devidamente integrados no ‘mundo’ que os viu nascer, assumem-se lições de vida!
            «Por um museu etnológico da Beira Baixa» é de 1983 e mantém a sua actualidade na proclamação da região como um todo diversificado que importa, afinal, preservar na sua diversificação autêntica.

Para que se não olvide…
            Essas reflexões do Homem e do Poeta, semeadas aqui e além, ao longo de já longo percurso, vão, mui judiciosamente, sendo passadas a livro. Cito dois.
            Sirgo II, datado de finais de 2018, reúne, como se anota em subtítulo, «Quatro títulos esgotados de poemas em prosa e poemas dispersos por outros títulos esgotados». Mais de 170 páginas, edição e propriedade do Instituto Politécnico de Castelo Branco (ISBN 978-989-8196-75-0). E os esgotados são «Malva», de 1995; «Largas vias», de 2000; «Ravinas», de 2004; «Modulações», de 2005. E os dispersos aqui reunidos atingem a bonita soma de 70!... Difícil comentar. São ecos d’alma ao longo «da vereda semi-perdida», em que o Poeta procura o seu lugar, na ânsia de um ripanço «azul sobre a cabeça e cabeça sob os pés» (p. 164).
            Poemas d’”O Pequeno Lugar” constitui, por seu turno, nas suas escassas 40 páginas, em edição (deste ano de 2019) da Associação Cultural chamada precisamente «O Pequeno Lugar», o oposto ao alheamento que eu anotava nas considerações iniciais: os textos, breves, comentam (dir-se-ia) as mui sugestivas fotografias de Marco Nunes, a chamar a atenção para as falas simples das humildes casas de xisto e o rumorejar das águas simples da ribeirinha... Tem razão o Poeta: aí, ‘um dia qualquer’, cansado da diáspora e de ‘missão cumprida’, o Homem regressará. E verá tudo com um outro olhar, sereno, sem se preocupar com os relógios…

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Reconquista (Castelo Branco), 4-7-2019, nº 3825, p. 35.



1 comentário:

  1. Um lindo texto-homenagem, por assim dizer, a um grande Poeta que venho seguindo ao longo dos anos. António Salvado é um dos maiores na Literatura portuguesa, criando beleza no silêncio.
    Madalena

    ResponderEliminar