sexta-feira, 5 de julho de 2019

Está com um livro – parabéns!

            Serenamente, Rosa aguardava a sua vez, na sala de espera do Serviço de Imagiologia. Levara um livro para ler, porquanto viera com tempo, para a ecografia. Quando a veio chamar, a técnica não resistiu a dizer-lhe, enquanto a encaminhava por o gabinete:
            – Parabéns! A senhora era a única que, na sala, estava a ler um livro, toda a gente via era os telemóveis!...
            Rosa admirou-se, sorriu, agradeceu e concordou.
            O Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas (Sintra) ufana-se de ter reunido, ao longo dos anos e muito por acção do seu responsável, Dr. Cardim Ribeiro, bibliófilo militante, uma excepcional biblioteca sobre a Antiguidade, inclusive com volumes de edições raras, seculares. À entrada desse espaço modelar, pronto a receber investigadores, uma placa em latim reza assim: LEGE · LEGE · LEGE · RELEGE – que é como quem diz: não te canses de ler!
            Hoje, a leitura começa a ser feita em «tablets» e, na escola, os meninos aprendem a manuseá-la, até porque inclusive o tradicional TPC lhes é enviado por correio electrónico. Compreende-se e aceita-se a inovação. Isso não está, porém, a impedir – e ainda bem! – que, em Centros de Dia e noutros locais comunitários, se haja instituído a «Hora da Leitura», amiúde protagonizada por um escritor. Uma forma, portanto, de contrabalançar o avanço do digital em exclusivo e de, por outro lado, se ensinarem os mais novos a sentir o cheiro do papel impresso e a palpar-lhe a textura.
            Custa-me passar junto de contentores do lixo e deparar com caixotes de papelão cheios de livros ou mesmo livros a monte, parte deles de colecções quase completas. Outro dia, eram mesmo os volumes de uma enciclopédia. Recolho-os por norma, faço a selecção, passo em revista as entidades passíveis de os receber e… começam as diligências da distribuição, evitando, pela diplomacia, eventuais relutâncias, mormente por parte do pessoal nem sempre vocacionado para a função que lhe cometeram e que, por isso, vê num novo volume apenas mais uma entrada a inserir no ficheiro!... Recordo o dia em que técnicos duma biblioteca foram a umas águas-furtadas onde, para entrega gratuita, havia uma colecção (rara em Portugal) de livros de bolso ingleses, mais de um milhar, tudo bem arrumadinho… e opinaram não ter qualquer interesse. Eram as águas-furtadas servidas por estreita escada quase em caracol…
                                                                                  José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 757, 2019-07-01, p. 11.

2 comentários:

  1. Madalena 9 de julho de 2019 às 18:22
    Esta chamada de atenção para a leitura em livro e para o destino dos livros, dá-nos a medida da sensibilidade do autor deste blog. De facto um livro é muito mais do que um conjunto de folhas impressas, de maior ou menor qualidade gráfica. O miolo é que importa, a alma de quem o escreveu e teve a ilusão de comunicar com alguém, com muita gente, de forma harmoniosa. Também eu já sofri ao ver livros a vender numa montanha desorganizada, no chão, alguns esventrados pelos maus tratos e pelo deficiente manuseamento. E poucos sabiam que estavam a lidar com o maior tesouro da Humanidade, um bem que nunca desvaloriza.
    Um abraço Amigo.

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    1. Bem haja, mui querida Madalena, por todo o apoio. Tal como um autor de livro, também o escrevinhador num blogue, como eu, gosta de saber que as suas ideias têm eco e a sua escrita leitores!

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