Li na juventude um texto da
«Reader’s Digest» com a história de uma família. Receberam, um dia,
correspondência de amigos escrita nas costas de um documento familiar.
Apreciaram a correspondência; mas o que mais concitou a atenção de todos foi
esse documento, revelador de curiosos aspectos da vida dos amigos. Não tenho já
ideia do que era, se um mero extracto bancário, se a conta da electricidade;
certamente, algo mais peculiar. Jamais esqueci esse caso, perdida na noite dos
tempos a categoria do tal documento. E a razão dessa memória reside em dois aspectos.
O primeiro, que se tornou para mim habitual, o aproveitamento das costas de um
papel usado. Tenho resmas de papel A4 que me servem para rascunho. O segundo:
essa forma original de partilhar a vida.
No programa «Primeira Pessoa» do dia
12 de Julho, p. p., Pacheco Pereira
afirmou, em relação à influência que nele teve Eugénio de Andrade:
«Eu lia os livros dele. E os livros
dele vinham sublinhados por ele e isso fez com que eu não gastasse muito tempo
a ler coisas secundárias, porque todos os autores que ele me indicou foram
fundamentais».
Na crónica que publiquei a 7 de
Março de 2019, de evocação de Josias Gyll, contei que ele me emprestara a tese
de doutoramento, policopiada, de Bracinha Vieira, numa época em que a Etologia
dava os primeiríssimos passos e ambos nos interessávamos por isso. Lembro-me,
como se fosse hoje, do que Josias Gyll me disse:
– Leve, leia e não se coíba de
sublinhar ou de escrever ao lado os seus comentários. Assim, quando eu voltar a
ler o livro, não lerei apenas o que o autor escreveu, mas reflectirei sobre o
que a si lhe pareceu digno de nota.
Nunca mais esqueci esta máxima! E
dou comigo, amiúde, a sublinhar os livros, de modo que, ao relê-los, sou como
Pacheco Pereira: releio só o que sublinhei!
Outro dia, um amigo escreveu-me num
cartão antigo, relacionado com uma actividade a que ele se dedicara. Apreciei.
Como não desgostei que um outro tivesse aproveitado o papel de carta de um
hotel por onde passara há anos. Sim, a gente amiúde fica com esse papel e o
sobrescrito como recordação e raramente os usa. Enviando-os, mesmo que seja
anos depois, pode ser motivo de conversa, sem pretensões, e, sobretudo, de
partilha de experiências vividas. Vai neles um pouco da gente!
José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 804, 01 de Agosto de 2021, p. 12.
Sublinhar um livro que depois pode ser lido por outrem vai dar indicações diversas que poderão condicionar a leitura...e dizer muito sobre quem fez o sublinhado
ResponderEliminarMaria Jose Azevedo Santos
ResponderEliminar30 de julho de 2021 20:38
Claro que já li o teu texto e pensei: o que vamos perder com o brutal desaparecimento da escrita à mão (que até tem um Dia Internacional em Janeiro. Tudo o que relatas tende a desaparecer e com isso uma fonte importante do conhecimento das gentes e dos seus costumes. Sinais desoladores dos tempos!
Teresa Pedrosa
ResponderEliminar31 de julho de 2021 08:02
Muito grata por mais uma partilha tão útil e verdadeira, que também me fez recordar os tempos de leitura que, em transportes públicos, fiz e em que sublinhava com a minha lapiseira, para mais tarde reler, sabendo assim que nada me escapava, mesmo que algum barulho de percurso perturbasse a minha leitura.
Regina Anacleto
ResponderEliminar1 de agosto de 2021 20:19
Obrigada pela partilha. Gostei muito de ler e levou-me a parar para pensar… Necessitamos dessas paragens que deveriam acontecer mais frequentemente.
José Manuel Varela Pires
ResponderEliminarSoube-me bem recordar Bracinha Vieira, um espírito raro e culto... E ainda o incontornável Josias Gyll, primando pela junção da cultura física e a intelectual. A modéstia é o valor do primeiro e a galhardia é ostentação do segundo!... Como os recordo!
Gostei de ler o texto enviado, leva-nos a entender que saber aproveitar é um ganho.
ResponderEliminarTambém, eu aproveito, folhas A4 usadas, para
fazer apontamentos de coisas que oiço na televisão e os talões das compras para apontar
a lista de compras, quando vou ao supermercado.
Ana Teresa
ResponderEliminarPor um lado, tocou no tema tão atual "reciclar". Por outro, não é à toa que, quando são textos longos e que um dia me poderão ser úteis, prefiro imprimir a ler online. Porque isso me permite sublinhar, apontar e guardar para um dia