Expõe-se no Museu Regional de Beja / Museu Rainha D. Leonor estranho pedestal romano, privado, desde já os tempos romanos certamente, do busto que o encimava. A inscrição em latim da sua face anterior revela uma realidade bem sugestiva e, porventura, exemplar.
O monumento
Descobriu-se
o monumento, em 1958, no decorrer dos trabalhos de escavação realizados junto
ao mercado da cidade de Beja.
Abel
Viana foi o primeiro a fazer-lhe referência n’O Arquivo de Beja nº XV,
desse mesmo ano, pág. 21-22. Aliás, realizou-se de 15 a 20 de Dezembro desse
ano de 1958, em Lisboa,
o I
Congresso Nacional de Arqueologia, e o arqueólogo pacense não deixou de aí dar
conta do singular achado, apresentando a comunicação «Lápide bejense,
consagrada a Juno», que viria a ser publicada no II volume das «Actas e
Memórias» desse congresso, em 1970, pág. 107-112.
Ciente
da importância do achado, Abel Viana voltou a aludir-lhe no nº duplo d’O Arquivo
de Beja de 1961-1962 (XVIII-XIX), na página 144, em que publica, inclusive,
fotografia das intervenções de 1958. A inscrição que ostenta virá, pois, por
esse motivo, a entrar no circuito científico internacional, na medida em que figurará,
sob o nº 1484, em Hispania Antiqua Epigraphica, suplemento anual da conceituada
revista madrilena Archivo Español de Arqueología, nº 8-11 (1957-1960).
De
mármore de Trigaches, com 59 cm de altura x 25,5/30 de largura e 17/19,5 de espessura,
é o que, em escultura, se designa «hermes», porque, a princípio, essas colunas prismáticas
quadrangulares, estavam encimadas pela cabeça do deus grego Hermes, equivalente
ao romano Mercúrio.
Começaram
por ter uma função, digamos assim, quase utilitária, porque, colocadas junto
aos caminhos, invocavam a protecção da divindade sobre os viandantes, uma vez
que Hermes era patrono dos comerciantes, necessitados de serem superiormente protegidos
contra a ladroagem. Pouco a pouco, porém, outras divindades substituíram Hermes
e, no tempo dos Romanos, em vez de divindades, não se hesitou em figurar no
busto pessoas de elevada importância social.
Tinham
em cada face lateral, como é o caso do exemplar bejense, «uma concavidade
proximamente quadrada, com 77 cm x 80 de lado e 27 de profundidade, destinada
ao encaixe de pequenos troços prismáticos de madeira, bronze ou pedra, para
servirem de suporte a coroas, grinaldas, e outras oferendas», escreve Abel
Viana (1958, p. 22).
Há,
no topo superior, «um espigão quase circular, com 25,5 cm de diâmetro
transverso e 2 a 4 cm de saliência, esculpido de modo a poder encaixar-se nele
e ficar seguro pelo próprio peso um busto, ou simples cabeça, de mármore ou de
bronze», explicitou desde logo Abel Viana (1958, p. 21).
A
inscrição e o seu significado
De
interesse maior era, sem dúvida, a inscrição patente na face anterior, que diz,
vertida do latim para português:
«À Juno da nossa Secunda – os escravos Primogene e Félix».
Importa frisar que não se entendeu, a princípio, o verdadeiro significado do texto, mormente no que concerne à entidade a que os dois escravos haviam dedicado o hermes.
Assim,
Abel Viana escreveu «os servos Primogene e Felix consagraram a
Juno aquela memória» (1958, p. 22). Tendo solicitado a opinião do conceituado
professor Scarlat Lambrino, este lhe esclareceu que, na epígrafe, o nome da
deusa estava «seguido do epíteto».
E
terá sido, quiçá, por isso, que Julio Mangas, no seu trabalho Esclavos y Libertos en la España Romana, de
1971, depois de sugerir que Felix poderia ser de origem africana,
acrescenta que ambos são «devotos de Juno, aqui apresentada como Secunda»,
sugerindo que «pode tratar-se de um caso de sincretismo em que, sob a palavra
Iuno está Tanit, divindade púnica» (p. 123).
Parece,
na verdade, ter sido tudo isto um verdadeiro quebra-cabeças, porque, num livro
sobre todas as inscrições romanas conhecidas até então na Península Ibérica,
intitulado Inscripciones Latinas de la España Romana, publicado em
Salamanca no ano de 1971, se dá como nome da pessoa aí mencionada «Secunda N.
Primogene».
Será
Jorge Alarcão, no seu Portugal Romano (1974, p. 161 e 1983, p. 171),
que explicitará o sentido do texto:
«Não
se trata certamente de inscrição à deusa Juno, mas ao espírito divinizado de Secunda
ao qual dois dos seus escravos prestam culto».
É
já uma aproximação ao verdadeiro significado do monumento, porque, na verdade,
não se trata do ex-voto a uma divindade, neste caso, Juno, a esposa de Júpiter
segundo a mitologia, mas sim da homenagem a uma senhora, a quem é atribuído um
espírito divino.
Ou
seja, explicando melhor:
Segundo
a crença dos Romanos, cada homem tinha o seu Génio, a centelha de espírito
divino que o guardava (assim a modos do Anjo da Guarda da religião cristã); e
cada mulher tinha a sua Juno!
Portanto,
neste caso, não há epíteto (ou cognome) nenhum da divindade: Secunda é
simplesmente homenageada por, nas suas grandes qualidades de mulher e dona
(recorde-se, os escravos eram ‘propriedade’ dos senhores!), ter um halo divino
a envolvê-la. E, por isso, Primogene e Félix decidem mandar esculpir o seu
busto e colocá-lo num hermes! E com toda a ternura não hesitam em chamá-la de…
«Nossa», um possessivo deveras carinhoso e bem elucidativo.
Compreende-se
o elevado significado social – e até económico! – deste gesto.
Económico,
porque se deduz que estes escravos haviam ajuntado bom pecúlio para arcarem com
as despesas do monumento.
Social,
porque, ao contrário do que amiúde se faz crer, nem tudo no Império Romano era
‘esclavagismo’; e, se alguns escravos poderiam ser, efectivamente, tratados
como ‘coisas’, de muitos outros se sabe que foram professores, preceptores,
encarregados dos negócios da villa do senhor como vilicus (feitor)…
Primogene e Félix estavam no grupo destes últimos!
Se
atentarmos, por fim, que houve, em Pax Iulia, mais um destes hermes e que de
nenhum outro se conhece a existência, até ao momento, na Lusitânia romana, superiormente
enaltecido fica o significado cultural desta, aparentemente, singela epígrafe.
Em
Pax Iulia, no século II da nossa era, em plena época romana, havia escravos
sim; mas o facto de estes terem mandado gravar em pedra, a fim de perdurar para
todo o sempre, esse seu estatuto servil demonstra claramente que tinham orgulho
na condição em que estavam, por, naturalmente, serem bem tratados. Esse aspecto
fica, de resto, patente não apenas na circunstância de homenagearem quem os comprara
mas também na forma esbelta, pública e eloquente como o fizeram, quer se pense
que o monumento se destinava a ser colocado no pátio interior da casa, quer na
sua frontaria ou num lugar público – como José Luís Madeira sugere na sua
proposta pictórica, que muito agradeço!
José d'Encarnação
Publicado no Diário do Alentejo, nº 2051, 13-08-2021, p. 13.
Novamente volto ao tema, depois do texto que acabo de escrever para chamar a atenção sobre o professor e inspector escolar Abel Viana (esquecidíssimo, hoje...) que a par do seu exercício como funcionário público foi um etnógrafo e antropólogo, que percorreu todo o Alentejo e o Algarve, em especial a serra algarvia, "separador" orográfico da nossa região em relação ao Baixo Alentejo (anos 40, 50...). Foi em vida irmão de outra eminente figura coimbrã, Mário Gonçalves Viana, este, muitos anos Director do jornal "Diário de Coimbra".
ResponderEliminarNo seu habitual estilo de escrita fluente é apetecível,o Professor Doutor José da Encarnação, desenha um oportuno e importante assunto de âmbito histórico, que felicitamos e agradecemos, pois nos revela no estilo de George Duby algo importante da vida privada romana. Obrigado,caro amigo, pelo rigor e minúcia com que nos revelou algo que tema a ver com Roma Antiga.
ResponderEliminarBem haja, meu caro Amigo Varela Pires, pelas suas sempre oportunas observações, a chamar a atenção para os aspectos que mais o tocaram. Aplaudo, obviamente, a sua evocação do enorme labor levado a cabo por Abel Viana e agradeço a referência a Mário Gonçalves Viana, não só por ter sido director do 'calinas', que a mim, como professor na Academia Coimbrã, muito me diz, mas também porque o seu livro «A Arte de Estudar» permanentemente me acompanha, como livro de cabeceira desde a juventude e ainda hoje o folheio de vez em quando. Bem haja!
EliminarEste fessor é uma enciclopédia ambulante. Bem haja
ResponderEliminarBeijinhos aqui debaixo de 42 graus.
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Um gosto enorme ler este extenso comentário interpretativo da inscrição latina feita no pedestal romano. Obrigado,José d'Encarnacao.
ResponderEliminarMeu Colega e Amigo Nicolò Brancato, de Roma, propõe, com muita oportunidade, que doravante, em vez de usarmos a palavra 'escravo' se use 'servo', que é, aliás, muito mais próxima do latim 'servus'.
ResponderEliminarEscreveu-me:
«Ho letto con molto piacere il tuo articolo sull'"angelo custode" di Secunda, ove hai puntualizzato che la situazione degli schiavi non era necessariamente così schiavista come si crede. Ma poiché non sarebbe del tutto corretto, come tu hai evidenziato, identificare i servi con la categoria degli schiavi come li intendiamo oggi. Non sarebbe il caso di uscire dell'equivoco ed utilizzare il termine latino, magari in corsivo, anziché "escravo, esclavo, schiavo, Sklave, esclave, slave"?».