sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Atirar pedras

            Múltiplas serão para cada um de nós, as imagens que, de imediato, ocorrem quando deparamos com a expressão «atirar pedras».
            Se já somos entraditos na idade, voa o pensamento para a infância, para os momentos em que, na rua (ainda havia rua e espaços para isso e companheiros para isso), nos desafiávamos mutuamente a ver quem tinha mais pontaria para deitar uma lata abaixo ou para acertar numa ‘caneca do pau-de-fio’, que era como nós chamámos aos suportes de porcelana das linhas telefónicas. Ou, na berma do charco que se formara com as chuvadas, quem conseguia fazer que a pedra saltasse mais vezes à tona da água antes de mergulhar. Esse, aliás, era um dos divertimentos maiores na praia: quem consegue mais saltos da pedra?
            Para algum de nós, pedrada pode, instintivamente, fazê-lo levar a mão à testa, onde ainda resiste, e resistirá, a cicatriz da pedra que, jogada para entrar no pontão da ribeira, saltou e provocou jorros de sangue, numa aflição.
            Quando começámos a ter lições de Religião, retivemos, porventura, aquela frase de Cristo, quando Lhe apresentaram Maria Madalena, com a intenção de obter d’Ele autorização para o apedrejamento previsto na Lei para quem se comportasse mal. E a resposta foi: «Quem dentre vós não tiver pecado que atire a primeira pedra» (João, 8, 7). E, ao contrário do que hoje ainda acontece, a morte por apedrejamento não ocorreu e Maria Madalena, rezam as Escrituras, salvou-se e é hoje venerada qual símbolo da regeneração.
            E há, pois, sentenças em que a expressão ‘atirar pedras’ vai na direcção da mensagem evangélica: «Quem tem telhados de vidro não atire pedras ao do vizinho», por exemplo.
            E se alguns de nós podem ter sempre no bolso um pedacinho de ametista ou de safira, «porque lhe dá sorte», o protege dos maus olhados, outros – para se consolarem das adversidades, das inimizades, dos ciúmes, das invejas… – poderão ir, amiúde, ao baú de pensamento buscar, para refrigério, a máxima patente no sagaz provérbio árabe:
«Não se atiram pedras às árvores que não têm fruto!».                    

                                    José d’Encarnação

 Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 859, 15/02/2024, p. 10.
 Ilustração de José Luís Madeira pensada expressamente para esta crónica.

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