sábado, 28 de junho de 2025

Cantar como a rola

            Duas razões me levaram a empreender esta conversa.
            A primeira, o facto de, nestes dias de Primavera a findar, eu ter diariamente logo ao despontar da aurora, a presença de uma rola que, pomposamente empoleirada
no tronco daquele pinheiro, passa bem meia-hora num trrrurru… que, confesso, eu não sei bem explicar: Se saúda a manhã, se mostra o seus contentamento, se está numa de chamar companheiro…
            A segunda, o êxito cada vez maior que está a ter a moda alentejana que diz:
            «Dá-me uma gotinha d’água / dessa que eu oiço correr, / entre pedras e pedrinhas, / entre pedras e pedrinhas, /alguma gota há-de haver. / Alguma gota há-de haver. /Quero molhar a garganta. / Quero cantar como a rola. / Quero cantar como a rola / Como a rola ninguém canta».
            E dei comigo a perguntar-me: se as crianças de hoje, a passar o dia entre as músicas e os ecrãs dos telemóveis, já viram uma rola ou se já a ouviram cantar.
            Se compreendem o que é isso de a água «correr entre pedras e pedrinhas».
            Se é possível ir aí a uma nascente, «entre pedras e pedrinhas» buscar uma pouca de água capaz de se beber, elas que habitualmente ou vão à torneira da cozinha ou bebem duma das garrafinhas de plástico.
            Se percebem a importância de «molhar a garganta». «Molhar a garganta? Como? Para quê?».
            Que interesse poderá haver em «cantar como a rola»? E porque não como o melro ou o canário?
            Já nada sei de programas escolares nem de objectivos de visitas de estudo. Sei, porém, que, há anos, numa visita com colegas licenciados pelos campos de Sintra, lhes dei a cheirar a flor da madressilva, lhes mostrei a diferença entre a espiga de trigo e a de cevada… Não sabiam. Tivera eu a dita de passar no campo meninice e juventude. Sabia a diferença entre um melro e um pardal…
            Perdoar-me-á o leitor se o levei por estes agora escusos caminhos. É que, de manhã, aquela rola – não sei se é sempre a mesma, estou em crer que sim – me estava sempre a dizer que eu devia falar dela. Se calhar, é mesmo por isso que ela teima em acordar-me todas as manhãs. Pronto: já lhe fiz a vontade!

                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 879, 21-06-2025, p. 10.

 

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