quinta-feira, 3 de março de 2011

O comboio da madrugada

Nos últimos anos do seu reinado, o imperador romano Tibério fugiu de Roma e refugiou-se na Villa Jovis, palácio-fortaleza alcandorado num dos pontos mais altos da ilha de Capri. Vai-se de funicular até meia encosta e depois, por serpenteantes carreiros de cabras (diríamos!), chega-se lá, ao fim de quase uma hora de caminho. Soberbo, o panorama que de lá se avista. E mete medo o desfiladeiro imenso, a pique, o mar sussurrando lá no fundo, qual mastim a morder canelas de gigante. Corria uma neblina agreste e fria quando lá estive e compreendi porque, assim isolado, sobre a vida do imperador se houvessem tecido as mais estranhas fantasias.
Pensei em Tibério, ao ver O Comboio da Madrugada, de Tennessee Williams, a peça que o Teatro Experimental de Cascais estreou no dia 18, porque é por ali, nesse golfo de Nápoles, cenário de todas as elucubrações e muitos sonhos, que se passam os últimos dias de Flora Goforth, a protagonista, vivida aqui numa das mais portentosas interpretações de Eunice Muñoz. E qualificar de «portentosa» é pouco, diga-se desde já, porque Eunice está em palco do princípio ao fim e incarna a personagem com tal ‘naturalidade’ (!) que nos extasia.
O silêncio, o marulhar das ondas, a brisa forte e fresca… essa solidão em que, para fugir dos outros e de si, Flora se refugiou, guardada por mastins e uma segurança feroz – que «os passaportes expiram e os convites também!»… Ali poderia reflectir melhor sobre o significado da vida e o significado da morte… Realidade difícil de enfrentar: «Tens uns belos dentes… São postiços?»…
‒ De que anda à procura?
‒ Gostaria tanto de umas torradas com açúcar para acompanhar o meu café!...
O café, porém, tem de tomar-se simples, «porque o comboio da madrugada, que traz o leite, já não pára mais aqui»…
Flora Goforth pressente, contudo, que está bem perto do fim. Christopher Flanders (Pedro Caeiro, outra magnífica interpretação) é, afinal, não um amante mais a seduzir mas o beijo do anjo da morte. Ela suspeita-o. E tudo se passa, afinal, nesta luta entre dar esse beijo inexorável agora, mais tarde, e em que circunstâncias… Que «a verdade é uma coisa muito frágil, muito perigosa… É nitroglicerina, deve-se manejá-la com muito cuidado!...». Um jogo, esse, o da Verdade, mui arriscado, portanto: precisas de apanhar um barco que te leve daqui…
Transcreve-se, no programa, a conversa entre Eunice Muñoz, Pedro Caeiro e Carlos Avilez, uma conversa dirigida por Miguel Graça, que teve a seu cargo a dramaturgia da peça. Elucidativa. A ler. Fixei-me sobretudo numa palavra: os ensaios. A força e o importante papel que eles desempenharam. É que interpretações assim – do encenador, dos actores, do cenógrafo, de toda a equipa… – constituem desafio único, inesquecível. Inesquecível para quem as viveu; inesquecível para quem teve a dita de os apreciar.
Seguramente – e temo estar a segurar-me a um lugar-comum, que o não é… – uma das mais bem conseguidas realizações do TEC. Dar os parabéns é muito pouco! Aplauda-se de pé durante longos minutos!

Publicado no Jornal de Cascais, nº 256, 02-03-2011, p. 6.

1 comentário:

  1. Olá. Agradecimentos pelo modo amável, apelativo e bem conseguido de divulgar esta manifestação cultural. Fiquei, obviamente, estimulado.

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