O Segredo Perdido, título que vem
antecedido (ou seguido) de «Lisboa, Terramoto de 1755», foi editado pela
Bertrand em Janeiro de 2005 (ISBN: 972-25-1392-3), na altura em que se
comemoravam os 250 anos do cat aclismo.
Perdoar-se-me-á por só agora a ele me referir; contudo, mesmo com atraso, acho
que será de interesse reflectirmos um pouco sobre o conteúdo desse romance
histórico e o que de novo ele veio trazer-nos.
Trata-se,
no fundo, da história de um cofre, que andou de mão em mão desde o torvelinho
do terramoto até cair, no dealbar do século XX, em usurária tenda de
antiquário, onde uma jornalista (a autora) o descobre quase um século depois e
verifica que, afinal, ele continha, escondidos, uma série de manuscritos, que
lhe acirraram a curiosidade e a levaram a evocar as gentes que lhe estiveram ligadas:
«Quando
comecei a escrever, propunha-me seguir o percurso do cofre, entrando com ele
pelas vidas e as épocas dos seus possuidores, assim como pelas “condicionantes”
das suas vendas» (p. 183).
No
cofre se encontrava, pois, o segredo: as cartas. Não é este um romance
histórico? E… História constrói-se com documentos! Eles aí estavam – a garantir
a autenticidade de todo o enredo, alicerçado também, naturalmente, nas
narrativas da época.
Há,
de permeio, uma ligação , querida à
autora, aos judeus que, na acolhedora Lisboa da II Grande Guerra, por aqui
passaram e jogaram no Casino do Estoril, em demanda do além-Atlântico: a venda
do cofre ajudou a ressarcir dívidas de jogo e permitiu o pagamento da viagem,
em Abril de 1942. E a jornalista tem os problemas destes primórdios do século
XXI: depressões, altos e baixos… Entrelaçado com o drama de Beatriz, há, pois,
o seu, atormentada como está pelo cancro da hipófise e pela separação de Walter.
Júlia
Nery, com base nas descrições da época, no que se sabe do eco enorme que o
terramoto de Lisboa teve por esse mundo fora e, naturalmente, nas visões dos cat aclismos de agora, traça um quadro realista do
que foi o terramoto, os mortos, os sobreviventes, não fugindo também àquele
realismo mágico (ai, aquela égua!...), de que, afinal, queiramos ou não, acabam
por ser entretecidos os nossos dias, com tantos pormenores que nos escapam e que
representam, sem disso amiúde nos apercebermos, essas ‘chamadas’ do Além… E serão
os sobreviventes que prosseguirão na história.
Descreve-se
a reconstrução , as medidas tomadas; os
violentos sermões do Padre Malagrida e, inclusive, ao pormenor, a sua morte a
mando severo da Inquisição ; o
quotidiano das famílias nobres, seus negócios claros e obscuros, os amores
furtivos: «Nocturnas escapadelas com destino certo a alcova de dona casada com
marido protector ou ausente» (p. 57). Quem diria que o ódio dos Távoras ou aos
Távoras andara envolto em reais enredos de saias!..
A sedução do convento
Há muito que a
vida conventual, o que lá enigmaticamente se passava ou passaria excita a
imaginação alheia. Um olhar – também
aqui, porque uma das personagens vai para freira e, naturalmente, contra a sua
vontade… – que não será, porventura, estereotipado, ainda que se realce ser a
vida em clausura resultante de malogrados amores, e sejam encarados os votos (de
pobreza, castidade e obediência) numa óptica de imposições contra natura.
Aliás, quiçá nesse horizonte – sempre alicia nte
porque, repito, estranho ao olhar comum – se encontrem ecos doutras leituras e
será, decerto, óbvia a imediata evocação
de Soror Mariana de Alcoforado e suas cartas de amor.
É
o delicioso fascínio exercido por aquela sempre demasiado pequena janela grade ada, elo subtil e único entre os dois mundos, o
de fora e o de dentro, envoltos ambos – por um lado e por outro – em denso
manto de intrigante mistério…
Na
p. 212 se desvenda o segredo: no convento, Beatriz recebe o cofre das mãos da
madre e declara, na última carta:
«Agora
me pesam a revolta, a desobediência. Choro, pela saudade daquela Maria Antónia
que eu era mas não me deixaram ser. […] Algumas páginas do meu diário e as
nossas cartas guardará este cofre como única memória que de mim fica no mundo».
Leitura acabada e
recapitulação feita sobre a viagem
pelo tempo empreendida: o drama de um amor impossível; o cofre de misterioso
recheio que perpassa pelos séculos, de mão em mão…
Plebeus,
nobres e freiras… suas vidas, emoções, tormentas e favores desfilam, pois, por
estas mais de 200 páginas, entrecruz ando-se
com a «Lisboa formosa» de 2000
a 2003.
De
capítulos curtos, não é leitura fácil de seguir, caso se não opte por ler tudo
de carreirinha e assim se fixarem melhor os nomes e os relacionamentos das personagens
envolvidas. Veja-se o índice: as 13 folhas do cofre mais as cartas de Beatriz e
de Guilherme emolduram o capítulo fundamental «As vidas». E a narradora acaba
por intrometer-se aqui e ali, não vá o leitor esquecer-se que é ela quem o guia
por estas veredas da História, ela que também tem a sua história, tão dramática
porventura como a das suas personagens: não constitui terramoto o mundo em que
estamos obrigados a viver?
«Passaram
mais de dois anos desde o dia em que descobri o secreto do cofre e desdobrei na
primeira folha de papel almaço, escrita a trinta violeta esmaecida, a história
de Beatriz» (Janeiro do ano 2002, p. 210).
Frases que há a reter
Sublinhei
passagens a reter, dado que Júlia Nery, autora, tem no sangue a sua matriz de
docente de Língua Portuguesa e, como tal, além de burilar a escrita, usa-a como
veículo de reflexões outras, de mensagens que, em seu entender, devem obrigar o
leitor a parar, quer para se extasiar com a beleza quer para voltar atrás e
melhor observar, com olhar crítico, o mundo que o rodeia. Frases lapidares
algumas, anotações singelas outras – mas sempre aureoladas de perspicácia a
realçar:
«Toma
lugar na fila e encosta -se aos pensamentos
que vieram a brincar na sua sombra» (p. 37).
«São
aqueles que mais sofrem quem menos odeia e melhor sabe perdoar» (/p. 41).
«A
gratidão dá frutos tão gostosos quanto o ódio destila mortíferos venenos» (p.
56).
«A
merda dos grandes às vezes é bom adubo na vida dos pequenos» (p. 57).
«O
conselho da moda: ter uma cómica por luxo, possuir uma dama por gosto, namorar
uma freira por moda, casar com uma prima por amor» (p. 59).
«Vida
de pobre anda pelo mundo de jumento, sempre empaca no caminho, demorando ou não
tendo tempo de chegar onde deseja. Não queiras tu, mulher, tocar o burro para a
frente, pedindo-lhe pressas de corcel» (p. 62).
«Seria
pouco a pouco guardado num canto das suas afectividades, como se faz a um
santinho de papel para marc ar o
salmo escolhido no missal» (p. 114).
«Lisboa
depressa odeia os que muito aclama» (p. 121).
«É
sempre contra vontade que mulher se despe de seus cabelos» (p. 143).
«O
homem engendrou angústias escusadas quando começou a dividir o tempo aos
bocadinhos» (p. 167).
«Tanto
mais lenta é a mó moendo quanto seja fraco o vento e seco o rio que lhe dá
força» (p. 210).
«Aprendi
que o grande sentido da vida é vivê-la» (p. 222).
«[…]
o êxtase do pôr do Sol, visão da morte para o renascimento, quando esta estrela
se faz traço de união entre a terra e o mar» (p. 227).
«Quero
saborear a cidade prenhe de gente, a dádiva de harmonias deste tocador de
ocarina encosta do à austeridade granítica
do prédio da esquina» (p. 228).
«Espreito
nas ruas estreitas do Bairro Alto intimidades a balouçar nas cordas da roupa»
(p. 229).
E
por este Segredo Perdido também nós
espreitámos intimidades!
Publicado em Cyberjornal, 08-10-2013:
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