quinta-feira, 15 de maio de 2014

Os motes do nosso quotidiano

            Todos nós, ao longo da vida, nos vamos apropriando de frases quer ouvidas aos nossos pais quer hauridas em livros e que se tornam norma de comportamento. Provérbios, por vezes, lugares-comuns, outras – mas que fazemos ‘nossas’ em determinada fase da nossa existência.
            Hoje, para mim, perante a transitoriedade do momento e a mui frágil precariedade dos ‘programas’, dou comigo, amiúde, a repetir frase de meu pai, que o é, obviamente, de muita gente também: «Conforme o toque assim se baila!». Ou ainda: «Nada acontece por acaso». E esta quem a terá dito pela primeira vez? Virá na Bíblia?
            E tenho as que, lidas, já cito de cor: «Não esqueças que é nos céus cinzentos que aparece o arco-íris» (de Augusto José Monteiro, no livro “Três estórias (pouco) doces”). E do «Principezinho», de Saint-Exupéry, muitas passagens, como, por exemplo: «Quando se ama uma flor plantada numa estrela, é um encanto, à noite, olhar para o céu: todas as estrelas estão floridas!».
            Certamente todos temos o hábito de sublinhar os nossos livros ou, se não é nosso, mas pedido de empréstimo à biblioteca ou a um amigo, o de anotarmos frases que nos caíram no goto. Tenho uma pasta com esses apontamentos:
            «Os sonhos são feras embalsamadas; a realidade é fera viva» (Agustina Bessa Luis, em ‘Adivinhas de Pedro e Inês’).
            «Todos os homens são reis, rainhas são todas as mulheres e príncipes os trabalhos de todos» (Saramago, «Memorial do Convento»).
            «Quando o tempo era mais lento e menos desperdiçado, menos gasto na sofreguidão inútil de chegar quanto antes, numa avidez de viver tão depressa que transforma a vida numa pobre aventura sem cor e sem sabor, uma corrida, um atropelamento, um cansaço» (Jorge Amado, «Os Velhos Marinheiros»).
            Creio bem que, mui frequentemente, os autores nem sequer se apercebem por completo da profundidade do que estão a escrever, tão naturais as frases lhes saem, fruto da reflexão que vão tendo e plasmando nas suas personagens.
            Morreu Gabriel García Marquez. As frases que disseminou pelos seus livros constam hoje de vários portais na Internet. E, na verdade, há quem as coleccione e no-las disponibilize com enorme facilidade.

«Dos outros para mim», de Celestino Costa
            O que Celestino Costa reuniu no livro «Dos Outros para mim», apresentado na tarde de sábado, 10, na sede da Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana, não foi resultado, porém, de uma busca aí, mas de leituras muitas, de muitas reflexões, de serões a falar com os seus botões. E tudo escreveu à mão. E agora, aí o temos, como presente. Para saborear.
            Poderá perguntar-se se é legítimo atribuir uma autoria a um livro com essa característica de mera colectânea de frases de outrem; ou, ainda, que interesse poderá deter para o próprio para os leitores esse amontoado de frases, sem ordem nenhuma nem cronológica nem organizadas por autor ou por temas, como que semeadas de acordo com os circunstancialismos do momento. Têm razão de ser as duas questões. E, à partida, a resposta negativa seria, sem dúvida, a mais acertada: não tem interesse nenhum!
            Pensando, contudo, um pouco melhor, talvez se descortinem razões.
            Primeiro, no caso vertente, o livro acaba por ser – ouso dizê-lo! – uma espécie de autobiografia interior. Não é apenas a capa, a reproduzir a lioz de Cascais e com os dizeres a negro como os epitáfios do cemitério da Guia onde o canteiro Celestino passou toda a vida, a cinzelar pedras e versos; é o conjunto dessas máximas que, paulatinamente, lhe foram burilando a alma, o pensamento, a vida! Colocando-as ao nosso dispor, não só nos oferece o seu retrato mas, de um modo subtil e assaz eloquente, nos incita a, de quando em vez, pararmos um pouco neste frenesim em que se nos vai a vida e… bebermos a longos haustos reconfortante sabedoria.
            Bem andaram, pois, a meu ver, a Junta de Freguesia de S. Domingos de Rana em apoiar essa pretensão de um dos seus fregueses e a Associação Cultural de Cascais em a facilitar.
            Por isso, ocorre-me que, nessa linha de pensamento, devo concluir este desabafo de hoje, transcrevendo mais uma das passagens do «Memorial do Convento» (ponho pontuação, que Saramago me perdoe!):
            «Porque será que os velhos se calam quando deveriam continuar falando? Por isso, os novos têm de aprender tudo desde o princípio!».
            Disponibilizou o ancião Celestino Costa a sabedoria que outros lhe inocularam também. Aos mais novos cumpre agora aprender essa lição!

Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 45, 14-05-2014, p. 6.

 

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