quarta-feira, 5 de novembro de 2014

A saga das avaliações

            Apetece-me dar de «saga» uma definição levemente heterodoxa: um género literário em que o protagonista passa pelas mais incríveis situações e consegue, alfim, atingir os seus objectivos.
            Houve a saga dos descobrimentos portugueses. Há a saga dos reformados, que dia a dia labutam pela sua subsistência e pela dos filhos e netos.
            Outra saga é a das avaliações. E avaliados não faltam: somos todos nós!
            Não, não vou referir-me aos professores. Sou professor, fui avaliado a vida inteira, sempre me autoavaliei. E sinto-me bem.
            Quero referir-me à obrigatoriedade que ora há de um paper (perdão, um «texto»!) apenas ser válido para efeitos, primeiro, de publicação e, depois, da subsequente creditação, se devidamente apreciado por referees (desculpe: «relatores»!).
            Dois exemplos:
            1 F. é catedrático. Formou, portanto, discípulos na sua especialidade. Propõe um artigo para a revista (que, por sinal, até dirigiu durante anos). Por sugestão do actual director, propôs a inclusão de três imagens; um dos relatores (seu ex-aluno) achou a inclusão desnecessária; o segundo: mais uma imagem era importante!   
            2 Ao proponente pareceu-lhe de interesse elaborar sucinta nota sobre tema inédito que ora surgira. Um dos relatores deu parecer negativo: era imprescindível investigar melhor e, aliás, o autor até nem conhece – perorou – o resultado da última investigação publicada semanas atrás…
            Pois.
            Verifica-se, por outro lado, que há cada vez menos investigadores disponíveis para fazerem recensões bibliográficas, que devem vir assinadas e onde as opiniões carecem sempre de justificação adequada. Exacto: aí está o busílis! É que, na saga das avaliações, tudo se passa supostamente sob anonimato, o que constitui mais uma ‘anedota’ do sistema (os especialistas conhecem-se bem uns aos outros…). A recensão tem um objectivo claro de discussão científica, de apreciação fundamentada; por seu turno, a avaliação, esta avaliação apenas deveria ajuizar se o texto proposto reúne, ou não, as condições necessárias e suficientes para ser publicado, ou seja, submetido à consideração dos especialistas em geral; não tem de seguir obrigatoriamente a opinião do relator.

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 649, 01-11-2014, p. 11.

 

1 comentário:

  1. Guilherme Cardoso comentou:
    "Aquilo que me deixa mais descansado é que chegará o momento em que certos "avaliadores" de hoje serão os avaliados de amanhã. Passamos a vida inteira a lembrarmo-nos que a Terra é redonda, porque a vemos plana, o que quer dizer: umas vezes por cima, outras por baixo..."


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