sábado, 1 de outubro de 2016

«Olhos de coruja, olhos de gato bravo»

            O filme de Ivo M. Ferreira, «Cartas da Guerra», baseada no livro «D'este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra», de António Lobo Antunes, trouxe de novo à ribalta a literatura que, de há uns 20/30 anos a esta parte, dá conta das experiências vividas no Ultramar. Antes e durante a guerra, sobretudo.
            Guiné, Angola e Moçambique, os palcos preferidos, porque os mais sangrentos e lancinantes. Houve, porém, uma outra «província», perdida lá nos confins do Extremo Oriente, que só de tempos a tempos, e pelos piores motivos, foi alvo de atenção.

Timor
            O escritor timorense Luís Cardoso, residente em Oeiras, consagra-se como um dos poucos que, paulatinamente e com base na experiência e na investigação, vai passando a escrito as tradições milenares de um povo, ou melhor, de uns povos, para nós, ocidentais, envoltos em mui estranhas concepções.
            O seu segundo livro, «Olhos de coruja, olhos de gato bravo» (Publicações Dom Quixote, 2002) pode ser encarado como um retrato do Timor aí pelos finais da década de 60. Propositadamente, não há referências cronológicas. Apenas quase no fim se alude à Revolução de Abril e se dá a entender que a organização em partidos das várias tendências políticas vigentes poderá vir a alterar profundamente o frágil equilíbrio dos poderes até então alicerçados nas famílias tradicionais e na riqueza em terras e em animais.
            O relevante papel da Igreja Católica. Nada se faz sem a opinião de Padre Santa, influente junto dos poderes políticos e eclesiásticos, suspeita-se que não apenas da metrópole mas até da Cúria. Personagem de enorme influência a todos os níveis. Secunda-o o catequista, pai de dois gémeos (Mateus e Matias) e da protagonista, que, após longas discussões, receberá o nome de uma antepassada, Beatriz. Um nascimento tardio, que até parece ter apanhado o pai desprevenido, atendendo às suas inúmeras andanças em prol dos catecúmenos, espalhados pelo território, mormente para presidir a cerimónias fúnebres…

Uma narrativa intrigante
            Retratam-se em pormenor os complexos rituais que rodeiam o nascimento. E o facto de a criança ter nascido (dizem!) com olhos grandes – nunca se chega a perceber qual o problema… – determina que lhe ponham, de imediato, uma venda, que a irá acompanhar até à última página, em que se consuma o seu casamento com um oficial de olhos de gato, o derradeiro administrador do território nomeado pelo Governo de Lisboa. Mistério!...
            Não é, por conseguinte, livro de leitura fácil, nas suas 150 páginas, de raríssimos parágrafos, períodos curtos, letra miudinha. E em que se contam, porventura, pelos dedos das duas mãos as frases em discurso directo.
            As intrigas familiares, as reacções psicológicas, os conflitos latentes. Romance psicológico e de costumes, desgarrado de uma paisagem concreta identificável ou, mesmo, de um período histórico cronologicamente balizável. A venda negra nos olhos – que dizem ter formato dos da coruja… – parece assumir-se, de facto, como estratagema para que nem tudo se veja, ainda que, paradoxalmente, a menina-da-venda-nos-olhos seja a narradora e veja mais do que muitos que, aparentemente, vendas não têm.
            Romance intrigante, a trazer alguma luz – como outros do mesmo autor – sobre um território ainda hoje dificilmente compreensível para quem nunca por lá passou. E, mesmo para esses, os que por lá passaram, muitos dos mitos e da realidade estarão para todo o sempre ocultos sob densa penumbra. Trata-se de um romance, bem no sei, e não um documento etnográfico e o escritor segue a sua filosofia; mesmo sabendo que o livro vai destinar-se primordialmente a um público português. Não seria, por isso, despiciendo ter-se incluído um apêndice explicativo de termos, de lugares, de circunstâncias, porque ali há etnografia, há história, há vocábulos próprios…
            «Padre Santa tinha dito que eu já tinha visto tudo. Não era verdade. Faltava-me ver os olhos dele. Eram verdes como de um gato bravo. Com a mão fechei os olhos dele. Depois disso não vi mais nada. Como se tivesse fechado os meus próprios olhos».
            Assim termina.
            Na antinomia entre o ver e o não-ver. Uma protagonista que nunca viu com os olhos e muito soube e um apaixonado que dela se enamorou e que às suas mãos vem a sucumbir por amor, de alfinete de ouro espetado no coração. Um drama romântico ou o drama de um povo? Afinal, de quem era a cegueira? E quem a tão enigmática Beatriz?
                                                                                  José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal, nº 157, 28-09-2016, p. 6.

1 comentário:

  1. Julia Fernandes
    2/10 às 17:07

    Gosto muito do que escreve o Luís Cardoso. Pouca gente escreve sobre Timor, mas o Luís escreve com a alma.

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