quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

O cinzeiro… deita-se fora?

             Jantar de inauguração do autódromo do Estoril. Ocupáramos uma mesa redonda. Comissários de pista chegaram depois, nós já estávamos instalados e perguntaram se poderiam sentar-se connosco. Acedemos, claro! A refeição foi um suceder de pratos bons, já não me recordo se cada qual se ia servir, creio que sim. Estava-se a aproximar a hora da sobremesa e o Correia de Morais tomou a palavra:
            – Amigos! É, de facto, este um dia festivo, estamos a comer bem, a companhia é deveras agradável e, como se aperceberam, tivemos muito gosto em que partilhassem a nossa mesa. Fomos simpáticos. Quero, porém, dizer-vos uma coisa: quem rouba o cinzeiro sou eu!
            Creio que só naquele momento reparámos bem no magnífico cinzeiro de cerâmica que estava a meio da mesa, com a pista do autódromo estilizada, em relevo. Uma boa recordação, sem dúvida. O Correia de Morais foi o ladrão daquele, mas vários dos comensais não hesitaram em ir à cata doutros.
            Recordo que nos cinzeiros do Tirano, de Alcabideche, estava escrito: «Roubado no Restaurante Tirano»!... Sabe-se bem porquê!
            Dei comigo, outro dia, a verificar que, espalhados pela casa, jaziam vários. Abandonados, tristes, escondidos pelos cantos, como que castigados por terem acoitado vícios. Custou-me vê-los assim, desamparados, sem direito sequer a cuidados paliativos, dado que se lhes antoja morte iminente. Custou-me, porque, se cada velho que morre é uma biblioteca que arde, cada cinzeiro que se perde é um rol imenso de histórias que se esvai. Que amores, que lânguidos olhares, que beijos furtivos entre uma fumaça e outra!.. A tudo, bem discreto, o cinzeiro assistia, em silêncio, sabendo que a cinza nele depositada penhor seria de um fogo que serenamente acompanhara paixões e muitos segredos!
            Havia um grande, pesado, de pedra, em cima da mesa da varanda e decidi ir lá pôr-lhe em volta todos os que encontrei. Fiquei admirado ao verificar que eram tantos, das mais diversas origens, nacionais e estrangeiros. Houve um tempo, de facto, em que cada universidade criava o seu com as suas armas e oferecia. Os restaurantes, como o Tirano, faziam gala em ter o seu nome neles gravado.
            Não deu resultado a cena de juntar todos em exposição. Afigurou-se-nos coisa sem jeito, apesar de haver, na verdade, cinzeiros de fino recorte, alguns pintados à mão, outros expressamente dedicados, por ocasião de congressos ou de reuniões internacionais, em que, naturalmente, se discutia entre um cigarro e outro.
            Há dias, alguém me mostrou um escarrador e sei que os há nos palácios nacionais; uma obra de arte, que se guarda como preciosidade, pois que, hoje, ninguém carece de escarrador. Como ninguém faz gala em usar bacio como aqueles que espreitam nas mesinhas de cabeceira dos palácios… Outros tempos, outros usos, a pôr de lado velharias…
            Pôr de lado? Escarradores e bacios palacianos de lado não se estão a pôr. ¿E o cinzeiro que te faz recordar aquele passeio romântico, aquele jantar (não, eu não fiquei com nenhum do autódromo, pelo simples motivo – confesso – que já não chegaram para mim, preferi roubar um queijo da serra…), aquelas férias…?
            Não, acho que não: o cinzeiro não pode deitar-se fora!

                                                                                  José d’Encarnação
Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 263, 2018-12-19, p. 8.

 

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