terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Um bucolismo a entrar pelas cidades…

            Gosto de serenar após o almoço. Comodamente sentado, a ouvir o bater cadenciado do relógio de sala. Tem um cavalinho em cima, já se viu, no jeito de ir saltar, mas acho que é apenas, de rabo alçado e pose solene, a imagem do tempo que não pára, que cavalga em demanda do Além.
Em demanda das águas maiores...
            Um verdadeiro tiquetaque susceptível de fazer adormecer e que é, simultaneamente, o aviso: eu não paro, Amigo! Aparentemente lento embora, continuo sem me deter. Como as águas que, outro dia, viste a escorrer para o mar na vazante, a água que penetrara na areia e saía agora, ininterrupta, à procura das águas maiores. Gostaste de a ver, porque imaginaste correntes límpidas, serenas, a arrastarem apenas areias finas, conchas pequenas, mansamente... Gostarias que nunca houvera correntes alterosas, demolidoras de margens e de casas, ameaçadoras para gados e pessoas.
            Três foram, agora, as pancadas do relógio. Brônzeas, diria. Qual gongo em templo budista. Três da tarde. O cavalinho nem tugiu!
            Na matriz também o sino bateu as três. Ao meio-dia convidara os fiéis a rezar o Angelus, aquela oração – três ave-marias – que a tradição cristã implantara, como que saudação a Nossa Senhora, à imitação do arcanjo Gabriel a anunciar a Maria que iria ser a Mãe de Deus. Outrora, ecoava esse toque pelas quebradas. Ao amanhecer, já o lavrador estava no campo; ao meio-dia, para o descanso; ao romper do lusco-fusco, para celebrar o regresso a casa.
            O bucolismo que ainda consegue, aqui e ali, penetrar pelas cidades, cada vez mais cansadas e saturadas de sons estridentes, de fumos, de pressas, de sinais vermelhos e verdes e amarelos a comandarem, frenéticos, o nosso ritmo.
            Por isso, aquele meu vizinho ousou engenhocar um canteiro na varanda. Sim, a varanda, quando gizada, era para ali se espairecer com a vista do horizonte, apreciar o alaranjado do pôr-do-sol… respirar! Sucedeu, porém, que não havia ocasião para espairecer, o horizonte fora ocultado pelo arranha-céus e o alaranjado d’outrora parece chamuscado de bem acinzentadas poeiras. Engenhocou, então, um canteiro. Começou pela salsa, pelos coentros, a hortelã… Alargou-o agora um tudo-nada mais, não muito agradado pela mulher, mas lá a convenceu quando lhe falou de alface sem químicos… Entrou-lhe pela casa uma nesga de campo, o bastante para se sentir menos prisioneiro.
                                                                       José d’Encarnação
Publicado em Renascimento (Mangualde), 01-12-2018, p. 11-12.
 
 

1 comentário:

  1. Luis Vicente
    Tão real e tão actual. Tempos modernos estes que vivemos. "Agricultores citadinos", e tantos campos votados ao abandono no mundo chamado rural! Corridas desenfreadas não se sabe bem atrás de quê. Parabéns, José! Este retrato da sociedade moderna está perfeito, ao contrário dela que de perfeição nada tem.
    Grande abraço.

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