quarta-feira, 3 de abril de 2019

E a bala perfurou o espelho!

            Tenho um quadro abstracto, a que a autora, Stella de Brito, deu o título de «Anjo». Passo por ele muitas vezes ao dia e raro é aquele em que não vejo nessas manchas cromáticas, em que o vermelho se casa com o escuro, o palpitar de um grande coração. E figura de anjo não na enxergo.
           Na peça ora em cena no Mirita Casimiro, «O Beijo de Judas», de David Hare, tradução e dramaturgia de Graça P. Corrêa, cenografia e figurinos de Fernando Alvarez, encenada por Carlos Avilez e que teve antestreia a, 27, Dia Mundial do Teatro, há um grande espelho, que nos permite a visão do verso e do anverso. Não falei com o Carlos nem com o Fernando e preferi – tal como em relação ao quadro da Stella – imaginar eu próprio a razão por que, no 1º acto, «Decisão de Ficar», passado em Londres em 1895, tudo se reflecte nitidamente na superfície espelhada, e, no 2º, «Decisão de Partir» (Itália, 1897), houve uma bala que, bem no centro, estilhaçou o espelho, mas não o logrou inutilizar: tudo continua a ser nele reflectido, mas com um rasto trágico, violento, bem visível…
            Não sei, portanto, a razão ‘oficial’ e podem tanto o Fernando como o Carlos vir desdizer-me acerca do que pretenderam sugerir nesta 160ª produção do TEC. Para mim, porém, despertou-me esse espelho fascínio enorme, pelo significado que, perante a narrativa, dele se pode desprender: há uma visão da realidade, do amor partilhado entre dois seres, uma visão pura, independente das convenções, cada qual a sente viva ao ver-se ao espelho; a agressão alheia, incómoda, brutal, veio toldar-lhe a pureza, restaram estilhaços, mas também esses se aceitam e, porque incómodos, obrigam a uma outra reflexão.
            Chocar-nos-ia o ambiente criado, com aquela enorme cama a ganhar relevo de «personagem» principal, palco de um «delito»; compreendemo-lo agora, uma vez que à partilha amorosa já se atribui um significado despido de anquilosantes peias. Para o Óscar Wilde dos últimos anos do século XIX, condenado a trabalhos forçados por admitir publicamente um amor proibido – amores proibidos, aliás!... –, olhamos hoje com outro olhar.
            Todos os sete actores vão magnificamente. Todos. Há, todavia, uma palavra que não se pode omitir: EX-CE-LEN-TE. Assim, soletrada devagar para que se compreenda bem; e em maiúscula, para que não escape. É que a interpretação de Renato Godinho, nado e criado na escola do TEC, se situa entre o que de melhor tenho visto nos últimos tempos. Além de o papel lhe ter exigido grande esforço, porque permanentemente em cena, revela um à-vontade invulgar na incarnação do personagem, nada fácil, diga-se, nos altos e baixos que as circunstâncias ali retratadas impõem. Não, não é uma representação – e que os espectadores se desenganem! Não. Renato Godinho é o personagem vivo. Todo ele. Numa naturalidade espantosa, que só um grande actor consegue ter. Contida naturalidade do gesto, das palavras, dos expressivos monossílabos. Da expressão de ternura ao pedido de dinheiro por parte de quem ora se vê na penúria. Quase no final do espectáculo, como que em jeito de longa mensagem, sentado, ao lado de sucessivos copos de brande e de um cigarro atrás do outro, Renato Godinho / Óscar Wilde proclama a liberdade de amar, a liberdade de criar…

                                                                                              José d’Encarnação


Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 275, 2019-04-03, p. 6.

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