quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Um mosaico romano com história para contar (III)

           
             
Escolhido o local e aceite pelo encomendante o tema decorativo proposto para o mosaico, havia que deitar mãos à obra.
Deve-se a Carlos Beloto –  além da paciência, da técnica e do saber com que foi, sob sua orientação e de Adília Alarcão, foi levantado e restaurado o mosaico do Oceano de Faro – o cuidado que teve em preparar também uma síntese acerca do que eram, ao tempo dos Romanos, as fases de construção de um mosaico. Com a devida vénia desses seus elementos me vou servir.
O primeiro passo era cavar o chão, aproximadamente com 50 cm de profundidade.
O fundo era, então, bem prensado e consolidado com placas de madeira e coberto com uma camada de pedras (statumen), que tomava normalmente a altura das pedras que o compunham. Seguia-se-lhe uma outra camada de argamassa grossa (rudus) e, finalmente, uma camada de argamassa (nucleus), na qual o tesselatum seria embutido.

Sobre esse nucleus viriam trabalhar o pictor imaginarius (o pintor das imagens), que concebera a imagem e as cores, e o pictor parietarius, que transferia e redimensionava o desenho para o pavimento.

            Ao levantar-se o mosaico de Faro, teve-se a grata e mui rara surpresa de verificar que algumas das tesselas estavam ‘manchadas’ pela tinta com que, na argamassa, se elaborara o desenho dos motivos.
Além dos dois pictores atrás citados, a confecção do mosaico exigia a presença do calcis coctor, que fazia o cimento; do pavimentarius, que preparava a superfície na qual o mosaico iria ser construído; do tessellarius, que se ocupava das partes mais simples do mosaico; e do musearius, a quem eram confiadas as partes mais complexas e as figuras.
Os pavimentos eram construídos in situ. E podemos imaginar tanto os pavimentarii como os tessellarii a trabalharem de joelhos ou agachados no chão. Calcula-se que poderia demorar a construir muito perto de três meses um suporte de mosaico desde o início (escavação do terreno) até à construção do tesselatum. Uma tarefa ingente!
Mais não fosse por isso, a preservação e recuperação deste mosaico logrou merecer todo o empenho da equipa do Museu de Conímbriga, especializada nesse tipo de trabalho. Nas páginas 225-226 do nº X dos Anais do Município de Faro (1980) minuciosamente descrevem Adília Alarcão e Carlos Beloto todas as fases por que passou o processo de restauro e consolidação desse extraordinário monumento histórico.
E cumpre, mais uma vez, lamentar que, logo no primeiro momento em que se procedeu à abertura da vala para as infraestruturas urbanas, não tenha havido quem, avisado e solícito, chamasse a atenção de quem de direito para as estranhas pedrinhas de cor que estavam a ser encontradas. Esse troço definitivamente se perdeu. Mais tarde, de boa parte se logrou salvaguardar.
E do que, resolvido todo esse moroso processo, hoje nos é dado observar há, por conseguinte, obrigação de contar. E isso é, aliás, o mais significativo: mostrar que interesse detém este mosaico para a história de Ossonoba.
Tema, pois, para a crónica do próximo mês

                                                           José d’Encarnação 

Publicado em Sul Informação, 25 de Agosto de 2025 

 

 

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

aculturações

     

   
    Falavam os historiadores de ‘romanização’ para identificar a influência exercida pelos Romanos colonizadores sobre as populações indígenas.
O fenómeno estava bem patente, por exemplo, nos monumentos epigráficos, uma vez que, por eles, se verifica claramente que mesmo os textos referentes a indígenas passaram a ser redigidos em latim e tanto os nomes de pessoas como os de divindades chegaram até nós latinizados.
Quando, porém o movimento descolonizador ganhou maior força no Ocidente, começou a proclamar-se que o uso da palavra estava errado, porque não houvera, da parte do governo central romano, uma ordem expressa para que tudo passasse a ser à romana. Daí que – até à semelhança do que ocorrera mais perto de nós, no contacto de civilizações diferentes – o termo ‘aculturação’ passasse a ser o preferido, porque, na verdade, ambas as partes em confronto acabavam por contribuir para o resultado final.
E, no caso português (o português nosso e o português do Brasil), há exemplos deveras curiosos nesse sentido:
– Camone: é um turista estrangeiro; a palavra deriva da expressão ‘come on’, «anda cá!», amiúde utilizada pelos turistas nos primeiros tempos.
– «à la guilho» é estranha e desajeitada corruptela, de uso culinário, da expressão castelhana ‘al ajillo’, literalmente ‘com alhinho’.
– Gilete: lâmina ou utensílio de barbear; vem do nome do seu inventor, o norte-americano King Camp Gillette (1855 1932).
– No português do Brasil uma fotocópia diz-se xerox, fotocopiar é xerocar, da marca inglesa Xerox. Inventado, em 1948, pelos físicos Chester Carlson (norte-americanos) e Otto Kornei (austríaco), este processo tem designação etimologicamente grega: de ‘cserós’ (seco) e ‘gráfo’ (escrever), por não usar tinta.
– Kodak foi, até à década de 90 do século passado, o nome corrente para designar máquina fotográfica, nome que deriva da marca, criada, em 1888, pelos norte-americanos George Eastman e Henry A. Strong.
– Freezer, em português do Brasil, é congelador, a palavra foi diretamente importada do inglês em que «to freeze» significa congelar.
Enfim, neste nosso mundo global, o que mais interessa é que, independentemente das palavras, os actos contribuam para uma cada vez mais desejável convivência pacífica.             

                José d’Encarnação

 Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 345, 20-08-2025, p. 13.

 

domingo, 3 de agosto de 2025

Conversar com flores

 

Reparaste em mim. Fico feliz. Viste as minhas florinhas? Sabes, ninguém repara nelas e a mim custa-me! Ah e a mim cortam-me! Nunca me deixam crescer. É raro eu conseguir mostrar a beleza das minhas corolas. Qualquer gretazinha em muro ou no chão me serve para eu me aninhar e viver. Vivo de pouco e cá vou ficando, enquanto me deixam. A ver as pessoas que passam. Tenho sempre um medo terrível que me pisem.

Vejo o teu cão, vejo os pardais e as rolas e os melros a beberem e, por vezes, a tomarem banho na pia que lhes destinaste. É a vida à minha volta. Eu gosto. Depois, aqui escondida na dobra deste degrau, sinto quantos entram e saem da tua casa. Apressados, uns; mas, de um modo geral, tranquilos, sem correria. Oiço o trinco do portão a avisar-me: «Vem gente!». Eu fico curiosa: «Quem será?».

 

Fotografaste-me com a sábia aplicação identificativa de plantas e, já percebi, ficaste a saber tudo sobre mim. Até deste um pulo – bem eu vi! – quando, arqueólogo como és, te apercebeste do meu nome: ruínas! E a seguir vem informação sobre o cientista que, pela primeira vez, me identificou: o botânico alemão Philipp Gaertner (1754-1825). Chamou-me cientificamente, em língua latina (fiquei toda babada): Cymbalaria muralis! Já viste? Nome bonito. Muralis, porque o meu reino é o dos muros, como tu, que gostas de encontrar as estruturas arqueológicas. E cymbalaria é giro, não é? Nada tem a ver com o cimbalino do pessoal do Porto, nome de bica por lá, devido à máquina La Cimbali que o prepara. Mas, se calhar, até tenho algo a ver com isso, porque… Olha lá o que diz o dicionário acerca de cymbalum, o címbalo: «Instrumento musical constituído por dois pratos ocos, de metal, que soam quando batem um no outro». Eu acho que não emito som nenhum. Mas gostava. Já viste o que era eu a saudar melodiosamente quem pisasse o degrau e viesse visitar-te? Já agora, diz-me lá o que mais dizem sobre as minhas características.

Está bem, faço-te a vontade, embora esta linguagem dos botânicos seja um tudo -nada hermética: «Erva vivaz, de glabra a pilosa, de caule até 60 cm». Puxa! Cresces bastante! Bem vejo as tuas amigas ali adiante a ganharem cada vez mais espaço, como quem se espreguiça na praia… Olha, diz aqui que as tuas flores parecem um rosto, de palato amarelo! É verdade: lembram-me as flores das orquídeas em miniatura muito miniatura. Vou mostrar aos meus amigos.

Bem hajas! Fico mesmo muito contente por teres conversado comigo. No fundo, sabes, é bem triste a vida de uma… ruínas! Acontece-lhe com muita frequência o que às outras ruínas, as das casas, sabes, acontece: deixam-nas arruinar-se ainda mais e lá vem o dia em que tudo arrasam, sem sequer fazerem o desenho do que restava. Hoje, porém, deste-me uma alegria… Obrigado!… Espera aí, não te vais embora ainda, porque tenho mais um segredo para te contar: é que eu pertenço à família das escrofulariáceas! Sabes porquê? Porque, outrora, os antigos, que percebiam dessas mèzinhas, usavam-nos para tratar das escrófulas, aquelas inflamações ulcerosas que tanto molestavam as pessoas, davam uma comichão danada e mau aspecto. Ora aí tens mais uma novidade para contar. Vês como, afinal, mesmo assim pequenina até eu servi para alguma coisa?!…

                                                                 José d'Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 3 de Agosto, 2025: https://duaslinhas.pt/2025/08/conversar-com-flores/

sábado, 2 de agosto de 2025

O imprevisível «apoio ao cliente»

            Nunca se sabe o que vai acontecer quando recorremos ao serviço de apoio ao cliente obrigatoriamente disponível em todas as empresas. É imprevisível.
Eu não hesito em contactá-lo, sempre que se me afigure de interesse. Interesse meu ou também de eventual interesse para a empresa.
Exemplifico.
Mudaram o sistema de abertura da embalagem de um produto de meu uso habitual. Uma mudança errada. Chamei a atenção. Alteraram. Congratulei-me.
Outro caso: sem razão plausível, o cereal dum lote chegou-me estragado. Tomei nota. Fotografei. Contactei. Pouco tempo depois, recebi uma embalagem em ordem, com o agradecimento da empresa. Eu próprio agradeci. Continuei cliente.
Duma outra empresa fui recebendo brindes por ser cliente fiel. Preparei com eles, em casa, um recanto simpático, que se me afigurou passível de também ser simpático para a empresa. Nada lhe pedi em troca; limitei-me singelamente a dar-lhe conhecimento do que preparara e que nos dera gozo criar. Certamente pensaram que desejávamos contrapartidas e nem sequer acusaram a recepção da foto enviada.
 
Muitas das embalagens de uso cotidiano apresentam, num canto, a expressão «Abertura fácil». Por experiência, afigura-se-me que nem sempre é fácil de todo. Achei, porém, a embalagem de um produto nacional em que – pasmei! - a abertura era mesmo extraordinariamente fácil! Dava-me gosto abri-la os tais dez minutos aconselháveis antes do consumo. Confesso que fiquei tão contente com a escolha que fizera – andava há muito tempo à procura de um enchido saboroso e simples para o pequeno almoço… – que me decidi comunicar o meu contentamento à empresa, salientando o caso da abertura fácil com que vivamente me congratulava. Nunca recebi qualquer eco.
Além do livro de reclamações, começou também, não há muito, a disponibilização de um livro para o elogio: «Aqui também pode elogiar!». Suspeito que de pouco servirá. Elogiar? Que é que isso interessa? É pena não haver esse hábito do elogio saudável e sincero. É pena o algoritmo do serviço de apoio ao cliente também não estar preparado para responder ao elogio, à sugestão construtiva. Urge fortalecer uma mentalidade em que o relacionamento com o cliente seja efetivo, eficiente e agradável.

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 880, 21-07-2025, p. 10.

                                            José d'Encarnação 

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Bajoulo

            – Eh, môce! Aquilo são tudo fezes sem mezinha! Não há meio de o pessoal se entender! Foi assim a modos de um bajoulo que prantaram na estreiteza da vereda e não se pode mesmo passar! – queixava-se-me o Jòquinzito, embrulhado que está na teia da herança.
 – Mais valia uma pessoa não ter nada! – desabafava. –  É porque tem uma parcela 4 pés de figueira e a outra só tem 2;  ou porque, naquela, o valado tá fêto e nas outras não… Uma afeleação  pegada. E lá fomos pra tribunal.
– É o pão-de-cada-dia, amigo, o pão-de-cada-dia – retorqui-lhe eu, em vã tentativa de consolo.
 Ficou-me, porém, essa do bajoulo. De onde é que a palavra virá?
 No Dicionário do Falar Algarvio até se indicam sinónimos: bogueixo, bajalôco, jabôlo. Desses nenhum eu ainda ouvira falar nem constam dos dicionários; mas bajoulo já. E cá para mim – pasme-se! – eu acho que vem mesmo do nome latim «bajulus», que significa ‘carregador’, ‘galego’. ‘Bajulus,’ que está ligado (imagine-se!...) ao verbo ‘bajulare’, levar às costas!... Quem diria!?...
 Por uma daquelas estranhas veredas por onde a língua nos leva – a metonímia, por exemplo – aqui não foi o continente que serviu para designar o conteúdo, mas o agente carregador que serviu para dar nome ao que bem gostaria de carregar, se para tal força houvera. Não houve – e o bajoulo ficou no chão.

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 344, 20-07-2025, p. 13.

O bajoulo

sábado, 12 de julho de 2025

A lição do alperce

                

            Preocuparam-se muito os estudiosos da vida dos povos que viveram no território hoje português antes da invasão romana, no século II a. C., com o facto de o nome das divindades que apareciam nos ex-votos nem sempre serem os mesmos.

            O caso mais conhecido era o de uma divindade que tivera o seu templo em Terena, concelho do Alandroal, lugar de culto que viria a ser, desde cedo, ‘cristianizado’, pois aí se fez erguer uma igreja da invocação de São Miguel-o-Anjo. As escavações levadas a efeito nas proximidades comprovaram a existência de ruínas romanas e até se encontraram mais lápides dedicadas a essa divindade, conhecida dos historiadores desde mui remotos tempos.

            Só tivemos, porém, conhecimento da sua prístina existência porque os Romanos, em exemplar atitude de pacífica coexistência religiosa e cultural, não só permitiram que a população autóctone continuasse a prestar culto à sua divindade, como eles próprios não hesitaram em, também eles, lhe agradecerem favores concedidos ou lhe solicitarem protecção. Faziam-no, é bem de ver, à sua maneira,: em língua latina, de acordo com os seus formulários e, como os indígenas usavam palavras para eles estranhas, acordaram em dar a essa taumaturga divindade o nome que lhes parecia ter percebido quando perguntaram aos locais como é que ela se chamava.

Compreende-se, por conseguinte, o que aconteceu: cada qual acabou por entender à sua maneira e, se a maior parte dos ex-votos conhecidos aponta para a existência de um nome mais vulgarizado, Endovellicus (com dois LL ou só com um), certo é que se registaram já as seguintes variantes: Endovelecus, Enobolicus, Endovollicus, Endovolicus, Ennovolicus.

            Sim, amigo, tem razão: estou a falar do deus que sugeriu ao saudoso João Aguiar o romance A Voz dos Deuses (Memórias de um Companheiro de Armas de Viriato), editado, em 1984, por Perspectivas & Realidades, de Lisboa. Esse guerreiro era precisamente, no romance, um sacerdote de Endovélico!”

            Voltando à grafia do teónimo: a princípio, linguistas e epigrafistas demoraram-se a procurar etimologias diversas, susceptíveis de, por um lado, explicarem as prerrogativas da divindade (o nome podia estar ligado a isso, como se deu nome a Nossa Senhora do Ó na sua acepção de protectora das grávidas), ou, por outro, a pertença a diferentes estratos linguísticos primordiais. Na actualidade, porém, já essas concepções se estão a deixar de parte.

            E aqui entra a lição do alperce.

            Para mim, em pequenino, essa bem deliciosa fruta — que se arroga o direito de ser pêssego em miniatura e muito mais saborosa!... – não era alperce. Começou por ser almecoque, à boa maneira do Barrocal algarvio. E quanto me agradava (meu pai ensinou-me!...) raspar o caroço num pedaço de arenito até abrir uma fenda, tirar de dentro a polpa e fazer dele um assobio!...

Também lhe chamávamos albricoque e abricoque; e há quem diga existirem também as formas abrinocoque, albaricorque, albercoque, albicoque, alcócaro, alcocre e alvaricoque! Alperce, alpece ou alperche só vindo para a Grande Lisboa é que eu percebi que era a mesma fruta que o almecoque (também eu chamava alcagoita ao amendoim). E é, ainda que os dicionaristas acabem, às vezes, por pôr os pés pelas mãos.

Ora veja-se:

O meu velhinho Dicionário Complementar da Língua Portuguesa, de Augusto Moreno, dicionário que se proclama «ortoépico, ortográfico e etimológico», de que me sirvo da 5ª edição «melhorada e em rigorosa harmonia com as Bases do Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de 1945», edição datada da 1946 e publicada pela Editora Educação Nacional, do Porto, pois esse meu companheiro diário garante-me que a palavra alperce ou alperche é um «damasco grande, de cheiro semelhante ao do pêssego» e é também «diospiro»! Seria, porventura, nessa longínqua década de 40, hoje não é. E, embora nada se tenha contra a cidade de Damasco, capital da Síria, raramente se ouve o nome de damasco para designar o pêssego, qualquer que seja o seu tamanho; poderá ser uma variedade, cuja origem radica no Médio Oriente. Agora, diospiro, amigo Augusto Moreno, essa é fruta bem diferente!

Informa ainda Augusto Moreno que, do  ponto de vista etimológico, «alperce» veio da palavra grega ‘persikós’ (περσικός), que significa literalmente ‘pérsico’, donde poderá ter vindo o árabe ‘albérchiga’. O fruto, dizem, terá vindo da China e, por isso, uma ligação ao Golfo Pérsico não parece despropositada. Já quanto a ‘albricoque’ viria do grego ‘praikókion’ (com o significado de ‘damasco’, dizem, mas eu não encontrei essa palavra), que teria dado, em árabe, «albarkuk».

Quiçá, porém, no meio deste enredo todo, algo de ainda mais interessante se possa apontar: é que «abricó» ou «abricotre» são palavras que existem no português do Brasil e os dicionários chegam a esclarecer que se trata dum «fruto brasileiro semelhante ao pêssego e ao damasco». Ora toma! Qual brasileiro nem meio brasileiro! É mesmo português de origem e fomos nós que o levámos para lá, à maneira antiga, na medida em que – sabe-se bem! – aí se continuam a usar vocábulos ‘clássicos’, nossos, d’outrora: veja-se ‘tombo’, ‘esteira’…

Posto isto, voltamos então à lição do alperce que nos levou ao, ainda mais longínquo, Endovélico: é grande a versatilidade da língua e o que interessava mesmo era que, apesar da versatilidade, todos nos entendermos! Pelo som das palavras e não pelo estampido das armas!

                                                        José d’Encarnação

Publicado em Duas Linhas, 12 de Julho, 2025: https://duaslinhas.pt/.../albricoque-almecoque-alcocaro.../


 

 

sábado, 28 de junho de 2025

Cantar como a rola

            Duas razões me levaram a empreender esta conversa.
            A primeira, o facto de, nestes dias de Primavera a findar, eu ter diariamente logo ao despontar da aurora, a presença de uma rola que, pomposamente empoleirada
no tronco daquele pinheiro, passa bem meia-hora num trrrurru… que, confesso, eu não sei bem explicar: Se saúda a manhã, se mostra o seus contentamento, se está numa de chamar companheiro…
            A segunda, o êxito cada vez maior que está a ter a moda alentejana que diz:
            «Dá-me uma gotinha d’água / dessa que eu oiço correr, / entre pedras e pedrinhas, / entre pedras e pedrinhas, /alguma gota há-de haver. / Alguma gota há-de haver. /Quero molhar a garganta. / Quero cantar como a rola. / Quero cantar como a rola / Como a rola ninguém canta».
            E dei comigo a perguntar-me: se as crianças de hoje, a passar o dia entre as músicas e os ecrãs dos telemóveis, já viram uma rola ou se já a ouviram cantar.
            Se compreendem o que é isso de a água «correr entre pedras e pedrinhas».
            Se é possível ir aí a uma nascente, «entre pedras e pedrinhas» buscar uma pouca de água capaz de se beber, elas que habitualmente ou vão à torneira da cozinha ou bebem duma das garrafinhas de plástico.
            Se percebem a importância de «molhar a garganta». «Molhar a garganta? Como? Para quê?».
            Que interesse poderá haver em «cantar como a rola»? E porque não como o melro ou o canário?
            Já nada sei de programas escolares nem de objectivos de visitas de estudo. Sei, porém, que, há anos, numa visita com colegas licenciados pelos campos de Sintra, lhes dei a cheirar a flor da madressilva, lhes mostrei a diferença entre a espiga de trigo e a de cevada… Não sabiam. Tivera eu a dita de passar no campo meninice e juventude. Sabia a diferença entre um melro e um pardal…
            Perdoar-me-á o leitor se o levei por estes agora escusos caminhos. É que, de manhã, aquela rola – não sei se é sempre a mesma, estou em crer que sim – me estava sempre a dizer que eu devia falar dela. Se calhar, é mesmo por isso que ela teima em acordar-me todas as manhãs. Pronto: já lhe fiz a vontade!

                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 879, 21-06-2025, p. 10.

 

Os correspondentes

          

 
            
– Olá, Amigo! Há séculos que não sei de ti. Como vais passando?
            É mensagem que surge, inesperada e com carácter de urgência, quando me lembro de um amigo de que há muito não tenho novas, mormente se se encontra na mesma situação que eu, de aposentado, e o sei a morar sozinho. Nestes casos extremos, raramente, porém, recebo resposta, porque a preguiça nos enreda e nem sempre há tema de conversa e, mesmo por correio electrónico, há que ligar o computador ou ir ao livro de endereços buscar o endereço e uma pessoa já se esqueceu se o pôs lá com o diminutivo, pelo primeiro nome ou pelo ‘nome de guerra’ ou pelo apelido. Bem sei que devia ser sempre pelo apelido e estávamos conversados. Mas aquele eu conheço é por Blé, aquela colega é a Mané e sei lá eu qual é o apelido que tem agora, depois de casada!...
            Custa-me passar largos tempos sem saber de quem partilhou comigo parte significativa da minha vida e tenho a ideia de que uma palavra pelo aniversário, por exemplo, é sempre reconfortante, a dar a ideia de que uma pessoa não se esquece. Elaborei também listas diferenciadas de amigos a quem, de vez em quando, envio uma ‘circular’ sobre tema que suponho seja do seu interesse. O rol dos destinatários vai, como é da praxe, em bcc (conhecimento oculto), não só por discrição mas também para dificultar a caça a endereços. Dos destes róis, tenho sempre dois ou três a quem, por mais que lhes diga que não, fazem questão de agradecer e lá fica cheia a caixa de correio com desnecessárias mensagens!...
Pior são aqueles amigos que recebem o vídeo sobre a catedral de Notre-Dame renovada ou o Trump vestido de papa e o partilham com o mundo inteiro. Já o recebi mais de dez vezes! Ou a Amiga que diariamente colhe na internet a mensagem «Bom dia» e a dispara em rajada. Ou quem, todos os dias, morando não muito longe de mim, me informa «Hoje, o céu cinzento!». E aqueloutro a quem eu enviei uma informação e ma reenvia, não se apercebendo que fui eu mesmo quem lha remeteu?!...
Ao tempo do Sr. Júlio Dinis e da sua Morgadinha dos Canaviais, a chegada do carteiro era uma festa, na esperança de se ter carta da amada, do marido ou do filho. E nunca com obreia preta! Hoje, rezamos para que a caixa não se encha depressa!...

                                               José d’Encarnação

Publicado no jornal Renascimento (Mangualde), nº 877, 21-04-2025, p. 10.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Estrafegar

            Sempre assim foi; contudo, há agora, cada vez mais, ao ouvirmos determinadas afirmações, ao termos conhecimento de determinadas atitudes, ao sentirmos na pele as picadelas da má governação ou da má vizinhança, que nos sai, forte, da boca:
            – A minha vontade era estrafegá-los a todos, que só nos sabem é charingar!
            E, em relação a alguém que especialmente nos fez mal e perdemos de todo a capacidade de dar cabal cumprimento às obras de misericórdia, gritamos:
            – Se eu o apanhasse, malvado, até os ossos eu lhe tarrincava!
            Assim, duma assentada se soltaram, raivosos, três verbos viperinos.
            Charingar vem no «Dicionário do Falar Algarvio«, de Brazão Gonçalves, e, além de aí se apresentar como um dos sinónimos de «importunar», explicita-se que a palavra originária era ‘seringar’, porventura do tempo em que a seringa dos senhores doutores ou das meninas enfermeiras era objecto de que, qual criancinha, se procurava fugir a sete pés. Hoje, picadela de seringa nem se sente e aquela pancadinha que a menina não deixa de nos dar até sabe a doce carícia. Charingar é, pois, muito mais do isso: é chatear mesmo, ser maçador até mais não.
            Note-se, porém, que, nem sempre essa tónica amaldiçoada está presente. Ora veja-se:
– «Estou charingado contigo. levas tudo prá brincadeira». «Se o avião não chega a horas, estamos charingados!». «Isto está uma fila que eu sei lá! Estamos charingados!».
Estrafegar também pode ser de maldade: «Se o apanho a jeito, estrafego-o todo», que é como quem diz «dou cabo dele!». Dizem que se relaciona com trasfega, que é o acto de passar uma coisa, designadamente um  liquido, dum lado para o outro, palavra que ouvimos quando a carga de um barco carece de ser passada para outro; eu acho que estrafegar não se prende com isso, mas sim com sacudidela, amarfanhamento, estragar com todas as forças!

            Já tarrincar, forma popular de ‘trincar’, é capaz de se usar mais, cá na maroteira barrocalense com um segundo sentido, de olhinhos gulosos: «Eu até os ossos lhe tarrincava, môce! Oh se tarrincava!». Percebe-se bem que se não está a falar de criação de capoeira, pois não!...

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 34, 20-06-2025, p. 13.

segunda-feira, 23 de junho de 2025

mosaico romano com história para contar (II)

Entrevimos, na primeira crónica, a 25 de fevereiro, o mosaico do Oceano de Faro. Aperitivo foi esse para agora nos debruçarmos um pouco sobre o seu significado histórico-cultural.

Antes, porém, de especificamente aí nos embrenharmos, não será porventura despiciendo dar algumas luzes acerca desta manifestação artística romana.

Aliás, amiúde, no dia-a-dia nos deparamos com a palavra ‘mosaico’, no sentido de aglomeração de elementos diversos a formar um todo; ainda no passado 10 de Junho nos explicaram que Portugal é… um ‘mosaico’ de povos!…

Isso é, de facto, o mosaico romano: a aglomeração de milhares de pedrinhas diferentes no tamanho e no colorido. Chama-se-lhes tesselas.

E não deixaremos de admirar, desde logo, o minucioso labor que a sua miúda confecção implica. Disso havemos de falar. Estudou Carlos Beloto, um dos nossos mais experientes técnicos nessa área, todas as fases de preparação do mosaico, a começar, naturalmente, pela sapiente escolha do material a utilizar, consoante o efeito a obter; será ele o nosso guia.

O mais normal é serem essas ‘pedrinhas’ obtidas a partir dum calcário mais ou menos brando, fácil de facetar, mas também há tesselas de granito. de basalto e, até, de vidro ou de alguma pedra a que chamamos preciosa como o lápis-lazúli (azul) ou a esmeralda (verde) ou, ainda, a cerâmica, a emprestar aquela corzinha rosada ou de tijolo.

Daí se deduz que, tal como nos tapetes ou nas tapeçarias, a cor goza, num mosaico, um papel relevante, porque só as tonalidades diferentes vão permitir quer o desenho geométrico quer a representação de cenas.

Compreende-se, desde já, pelo que fica dito, que encomendar um mosaico não está ao alcance do bolso de qualquer um – como, nos nossos dias, um tapete de Arraiolos ou genuíno tapete oriental não constituem privilégio de muitos.

Por conseguinte, essa é a primeira conclusão: do achamento de um mosaico romano se deduz estarmos em presença de um proprietário ou de uma entidade com posses para a esse luxo se dar. Ganhava bem o artífice, devia ter apurado gosto estético não apenas o encomendante mas sobretudo o artífice na sua minuciosa tarefa.

Tesselas – Foto: José d’Encarnação 

Houve, pois, uma encomenda. Quem encomendou? Para onde? Com que intenção? – tudo questões prévias a resolver, mediante a elaboração do que hoje chamaríamos o respectivo cartão. Aí se especificaria o desenho a compor e as dimensões, tendo naturalmente em conta o espaço a ocupar e o efeito visual a obter: tarefa reservada ao chamado pictor imaginarius, que concebia a imagem e as cores…

Temos hoje a ideia clara de que havia cartões tipo, quer porque determinadas cenas mitológicas se tornaram famosas e fizeram longos percursos, quer porque a representação, por exemplo, de divindades obedecia cânones pré-concebidos.

Uma segunda conclusão se deve tirar (e essa constitui, na verdade, o aspecto mais importante a ter em conta quando se analisa um mosaico do ponto de vista histórico): é que a arte final representa o resultado da ‘comunhão’ entre encomendante e artífices, uma singular simbiose cultural ….

Artífices a prepararem tudo para fazer um mosaico

 

Pensa-se, inclusive, que os artífices mais célebres (foram mui raros, no entanto, os que quiseram deixar a sua assinatura na obra feita) teriam sido chamados a executar encomendas por aqui e por ali.

E é cavalgando a imaginar essa artística deambulação que nos vamos hoje ficar, para, na próxima vez, começarmos a admirar de perto a magnificência que, um dia, se logrou salvaguardar na antiga Rua da Carreira, na capital algarvia.

                                                    José d'Encarnação         

Publicado em Sul Informação Junho 21, 2025