Preocuparam-se muito
os estudiosos da vida dos povos que viveram no território hoje português antes
da invasão romana, no século II a. C., com o facto de o nome das divindades que
apareciam nos ex-votos nem sempre serem os mesmos.
O caso mais conhecido
era o de uma divindade que tivera o seu templo em Terena, concelho do
Alandroal, lugar de culto que viria a ser, desde cedo, ‘cristianizado’, pois aí
se fez erguer uma igreja da invocação de São Miguel-o-Anjo. As escavações
levadas a efeito nas proximidades comprovaram a existência de ruínas romanas e
até se encontraram mais lápides dedicadas a essa divindade, conhecida dos
historiadores desde mui remotos tempos.
Só tivemos, porém,
conhecimento da sua prístina existência porque os Romanos, em exemplar atitude
de pacífica coexistência religiosa e cultural, não só permitiram que a
população autóctone continuasse a prestar culto à sua divindade, como eles
próprios não hesitaram em, também eles, lhe agradecerem favores concedidos ou
lhe solicitarem protecção. Faziam-no, é bem de ver, à sua maneira,: em língua
latina, de acordo com os seus formulários e, como os indígenas usavam palavras
para eles estranhas, acordaram em dar a essa taumaturga divindade o nome que
lhes parecia ter percebido quando perguntaram aos locais como é que ela se
chamava.
Compreende-se, por conseguinte, o que aconteceu:
cada qual acabou por entender à sua maneira e, se a maior parte dos ex-votos
conhecidos aponta para a existência de um nome mais vulgarizado, Endovellicus
(com dois LL ou só com um), certo é que se registaram já as seguintes
variantes: Endovelecus, Enobolicus, Endovollicus, Endovolicus, Ennovolicus.
Sim, amigo, tem razão:
estou a falar do deus que sugeriu ao saudoso João Aguiar o romance A Voz dos
Deuses (Memórias de um Companheiro de Armas de Viriato), editado, em 1984,
por Perspectivas & Realidades, de Lisboa. Esse guerreiro era precisamente,
no romance, um sacerdote de Endovélico!”
Voltando à grafia do
teónimo: a princípio, linguistas e epigrafistas demoraram-se a procurar
etimologias diversas, susceptíveis de, por um lado, explicarem as prerrogativas
da divindade (o nome podia estar ligado a isso, como se deu nome a Nossa
Senhora do Ó na sua acepção de protectora das grávidas), ou, por outro, a
pertença a diferentes estratos linguísticos primordiais. Na actualidade, porém,
já essas concepções se estão a deixar de parte.
E aqui entra a lição
do alperce.
Para mim, em
pequenino, essa bem deliciosa fruta — que se arroga o direito de ser pêssego em
miniatura e muito mais saborosa!... – não era alperce. Começou por ser
almecoque, à boa maneira do Barrocal algarvio. E quanto me agradava (meu pai
ensinou-me!...) raspar o caroço num pedaço de arenito até abrir uma fenda,
tirar de dentro a polpa e fazer dele um assobio!...
Também lhe chamávamos albricoque e abricoque; e há
quem diga existirem também as formas abrinocoque, albaricorque, albercoque,
albicoque, alcócaro, alcocre e alvaricoque! Alperce, alpece ou alperche só
vindo para a Grande Lisboa é que eu percebi que era a mesma fruta que o
almecoque (também eu chamava alcagoita ao amendoim). E é, ainda que os
dicionaristas acabem, às vezes, por pôr os pés pelas mãos.
Ora veja-se:
O meu velhinho Dicionário Complementar da Língua
Portuguesa, de Augusto Moreno, dicionário que se proclama
«ortoépico, ortográfico e etimológico», de que me sirvo da 5ª edição «melhorada
e em rigorosa harmonia com as Bases do Acordo Ortográfico Luso-Brasileiro de
1945», edição datada da 1946 e publicada pela Editora Educação Nacional, do
Porto, pois esse meu companheiro diário garante-me que a palavra alperce ou
alperche é um «damasco grande, de cheiro semelhante ao do pêssego» e é também
«diospiro»! Seria, porventura, nessa longínqua década de 40, hoje não é. E,
embora nada se tenha contra a cidade de Damasco, capital da Síria, raramente se
ouve o nome de damasco para designar o pêssego, qualquer que seja o seu
tamanho; poderá ser uma variedade, cuja origem radica no Médio Oriente. Agora,
diospiro, amigo Augusto Moreno, essa é fruta bem diferente!
Informa ainda Augusto Moreno que, do ponto de vista etimológico, «alperce» veio da
palavra grega ‘persikós’ (περσικός),
que significa literalmente ‘pérsico’, donde poderá ter vindo o árabe
‘albérchiga’. O fruto, dizem, terá vindo da China e, por isso, uma ligação ao
Golfo Pérsico não parece despropositada. Já quanto a ‘albricoque’ viria do
grego ‘praikókion’ (com o significado de ‘damasco’, dizem, mas eu não encontrei
essa palavra), que teria dado, em árabe, «albarkuk».
Quiçá, porém, no meio deste enredo todo, algo de
ainda mais interessante se possa apontar: é que «abricó» ou «abricotre» são
palavras que existem no português do Brasil e os dicionários chegam a esclarecer
que se trata dum «fruto brasileiro semelhante ao pêssego e ao damasco». Ora
toma! Qual brasileiro nem meio brasileiro! É mesmo português de origem e fomos
nós que o levámos para lá, à maneira antiga, na medida em que – sabe-se bem! – aí
se continuam a usar vocábulos ‘clássicos’, nossos, d’outrora: veja-se ‘tombo’,
‘esteira’…
Posto isto, voltamos então à lição do alperce que
nos levou ao, ainda mais longínquo, Endovélico: é grande a versatilidade da
língua e o que interessava mesmo era que, apesar da versatilidade, todos nos
entendermos! Pelo som das palavras e não pelo estampido das armas!
José d’Encarnação
Publicado em Duas Linhas, 12 de Julho, 2025: https://duaslinhas.pt/.../albricoque-almecoque-alcocaro.../