quinta-feira, 11 de julho de 2013

As histórias parvas de Rogério Carvalho

            Foi apresentado, no passado dia 3, na mui dinâmica Biblioteca Municipal Gustavo Pinto Lopes, de Torres Novas, o mais recente livro de Rogério Pires de Carvalho, Histórias Parvas (editora Fonte da Palavra, Lisboa, Maio de 2013, ISBN: 978-989-667-152-5, 148 páginas). Explicava-se, no convite, que a obra se constituía «como um exercício de humor e de ironia, fundado numa permanente inquietação ética e no drama silencioso, mas cáustico, de um país atávico e recheado de contradições».
            Confesso-me inculto de literaturas. Sempre privilegiei a vida, as histórias reais e mesmo as telenovelas – embora saiba da sua carga pedagógica e social – não me seduzem por aí além, pois se me afigura o quotidiano muito mais rico de peripécias e conteúdos.
            Por isso, era incapaz de escrever o erudito prefácio com que José Manuel Vasconcelos apresentou este livro, em cujos contos reconheceu, por exemplo, a existência de «uma trave brandoniana». Acredito mui piedosamente que o Autor possa ter-se inspirado na passagem X do famoso escritor Y; contudo, para mim, Rogério Pires Carvalho é o «rapaz» de vida atribulada como todos os que nascemos no pós-guerra e comemos o pão que o Diabo amassou e vivemos a guerra d’África e sonhámos com um 25 de Abril: põe no papel essas atribulações por que passou, os sonhos acalentados, numa linguagem em que o cenário urbano inteiramente se entrelaça com cenários campesinos de uma infância longínqua e cenários fantásticos de parvoíce pegada.
            «Parvo» é, em latim, ‘pequeno’, no sentido real – e são-no , de um modo geral, pequenas estas vinte histórias apenas numeradas, sem título nem índice –, e ‘pequeno’ no sentido figurado, porque relatam casos… pequenos!
            E o facto de o Autor não ter querido sequer propor títulos – crítica velada a já não haver pessoas mas números?... – poderá interpretar-se também como uma forma de querer deixar essa tarefa ao leitor, não o sugestionando sequer.
            Autobiográfico? – Sim. Romance de costumes? – Sim. Parvoíces? – Porque não?
            Sugestiva a fotografia da capa, a que não há qualquer referência nem no texto nem na ficha técnica: dois cavalheiros, de uma burguesia média-alta datável de meados do século XX, chapéu de feltro de copa redonda, farto bigode, bengala, apertam a mão e posam para o fotógrafo. Foto de estúdio, com cenário de indefinida paisagem sépia detrás. Quem são e o que nos querem dizer?
            Mais eloquente será a primeira badana, em que o autor preferiu deixar-se fotografar com o seu cachorro de estimação. Eco daquele aforismo (cuja paternidade vi atribuída a Blaise Pascal) «quanto mais conheço as pessoas, mais gosto do meu cachorro»? Creio bem que sim, dado o tom geral das histórias, em que, por exemplo, é a maçã a comer o homem (cansado de «ofícios inúteis» e «despachos absurdos» – p. 91) e as férias numa praia tropical terminam porque o crocodilo engole o zeloso funcionário, o qual, mesmo deglutido, «ia imaginando os termos exactos que deveria usar no oficio a endereçar à agência de viagens, dentro do prazo legal das reclamações» (p. 108), porque ser engolido por crocodilo não estava previsto no contrato devidamente assinado. Ironia mordaz, feroz sarcasmo, deliciosa viagem para um dia-a-dia mui frequentemente sem qualquer sentido como o daquela CAIXA DE SUGESTÕES que, à porta do serviço de urgências do hospital, se transforma, a dado passo, com a usura do tempo, em CAIXA DE S. CESIO e, consequentemente, desata a receber piedosos óbolos, cujo destino, obviamente, se (des)conhece (p. 13-16).
            Os retratos da vida rural obrigam-nos a consulta de dicionário, porque a palavra é a exacta e dentro do contexto. Outras vezes, porém, essa consulta deriva de provocada dúvida de grafia, porque, aparentemente, o editor não se ralou em apresentar o livro com um número de gralhas superior ao que seria razoável em edição que se preza.
Hino ao absurdo da vida que nos obrigam a ter? Hino, não: libelo contra!
«A terra está a morrer, eu estou a morrer, está tudo a morrer por aqui de roda. Só ficaram os velhos, para aqui à espera de morrer, os novos foram-se, abalaram, voltam velhos, quando voltam, o mais certo é não voltarem, já ninguém se quer chegar a estas terras de maldição. Ainda se fossem terras dos vales, terras fundas, terras gordas como mantas de toucinho, terras de barros a agarrarem-se às solas das botas como côdeas de trigo, isso era vê-las a dar, a darem tudo o que se lhes quisesse deitar» (p. 64-65).
Quem o garante, porém? De «terras de maldição» depressa são capazes de voltar a ser – pelo caminho que isto leva – «terras de salvação». Eu cá aposto nessa! E, desta sorte, poderia ganhar sentido a foto da capa: vamos preservar a tradição! Já! Antes que o crocodilo ou a maçã venham aí e nos engulam!

Publicado em Cyberjornal, edição de 11-07-2013:

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