quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Os velhos mal enterrados

Um artigo muito… estranho!
            O art.º 78º do Estatuto da Aposentação (Decreto-Lei nº 498/72, de 9 de Dezembro) foi alterado pela lei 11/2014. A alteração foi aprovada pela Assembleia da República a 24 de Janeiro; promulgada pelo Sr. Presidente da República, a 21 de Fevereiro; referendada, com assinatura do Sr. Primeiro-ministro, a 25 de Fevereiro; e publicada no Diário da República de 6 de Março.
            Ou seja, a alteração passou por todos os trâmites habituais – Assembleia da República, Presidência da República e Conselho de Ministros. Foi, por conseguinte, analisada com o rigor que caracteriza esses órgãos do poder. E, assim, temos de pensar que, ao ser proposto que se proíba aos aposentados do Estado o exercício de funções públicas, deixando ‘cair’ o que estava determinado no art.º 78º – a incompatibilidade do exercício de funções públicas remuneradas – houve, por parte do proponente (uma pessoa ou um grupo de pessoas), a consciência clara do que estava a fazer: impedir aos aposentados o exercício de funções públicas, independentemente de serem remuneradas ou não, ao serviço do Estado e demais entidades públicas, salvo autorização superior, dada caso a caso!...
            Bagão Félix, no seu comentário televisivo de 16 de Julho, teceu duras considerações a esta alteração: é o “cúmulo de estupidez legislativa”, disse, uma «eutanásia»! O Prof. Jorge Miranda, por seu turno, em artigo publicado a 31 de Julho no jornal Público, afirmava ser esta lei uma «afronta», a revelar clara «inépcia legislativa». E a sua argumentação, lógica e cerrada, vai mesmo no sentido de explicar que a determinação – além de contrária ao senso comum – carece de legitimidade constitucional.

Importa saber quem foi
            Depois de tão ilustres comentadores, nada deveria eu acrescentar, porque… está tudo dito! Permita-se-me, porém, que volte um tudo-nada atrás, para perguntar: quem é que foi a mente iluminada que riscou do decreto-lei a palavra ‘remuneradas’? E que razões aduziu para isso? E não houve, no seio da nossa mui digna Assembleia da República, um deputado coca-bichinhos, nem à direita nem à esquerda, que tivesse esmiuçado essa lei 11/2014, que até nem é tão grande assim (apenas 4 páginas, com espaços!)?
            Se todos leram em diagonal, aqui fica o alerta à navegação: qualquer dia, há um menino rabino que altera a vírgula, ninguém repara e… pode ser o cabo dos trabalhos! Se não leram em diagonal – e vamos pensar que sim, que temos grupos parlamentares conscienciosos e que sabem bem o que estão a fazer –, a intenção é mesmo a de mandar às urtigas aqueles aposentados da função pública que ainda se consideravam em condições de transmitirem aos demais algo da experiência adquirida. E mandar às urtigas em nome de quê? Do lugar que esses velhos ocupam, ainda que nada custe ao erário, e que, retirando-se eles, pode vir a ser ocupado por outrem – e assim se cria mais emprego?

O conluio contra a velhada
            Não acredito que os senhores deputados e o senhor presidente e o senhor primeiro-ministro desconheçam o papel fundamental que os velhos continuam a ter nas famílias e na sociedade. Acredito que sabem muito bem que vivem dos aposentados as universidades seniores e as instituições de solidariedade, por exemplo.
            Acredito igualmente que alguém da sua caterva de assessores lhes haja, algum dia, feito chegar às mãos os comentários que enxameiam os jornais a invectivar o modo como, fiéis a um paradigma suicida, os ‘governos’ europeus maltratam os velhos.
            1 «Com a reforma (…) cessa a vida profissional, mas não acaba uma competência desenvolvida ao longo da vida. [O reformado] deverá ter oportunidade de servir a comunidade, de fazer voluntariado, onde puder e quiser.» (Público, 4-11-2012: «Idosos, ética e reforma», de Frei Bento Domingues, da Ordem dos Pregadores parece-me, todavia, que está a pregar num deserto!…).
            2 – «Portugal não é país para velhos. Os políticos devem pensar que os nossos velhos já estão mortos e que, no fim de contas, estamos todos mal enterrados...» (Joaquim Letria, 12.11.2012).
            3 «Velhos são velhos. Desossem-se. Já estão descarnados. Em 2014, de corte em corte […] [o governo] organizará e subsidiará, com o Orçamento do Estado, o seu funeral colectivo». (Alberto Pinto Nogueira, «A broa dos velhos», Público, 4-9-2013).
            4 «Na verdade, quando se assiste a este ataque à condição de se ser mais velho […], será que não seria possível ir um pouco mais longe e “ajustá-los”, ou seja, exterminá-los?» (José Pacheco Pereira, 21-3-2014).
            Pronto, já meti de novo a viola no saco – que esta letra e esta música, afinal, são conhecidas de mais!...
 
Publicado em Costa do Sol – Jornal Regional dos Concelhos de Oeiras e Cascais, nº 57, 13-08-2014, p. 6.

7 comentários:

  1. Luisa Guerreiro Jacinto:
    Pois é, este país não é para velhos. Se esses catraios que andam lá para os lados de S.Bento aprendessem alguma coisa com os "velhos" não fariam tanta asneira...
    14/8 às 14:36

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  2. Maria Carlos Aldeia:
    O famigerado artº. 78º. da Lei 11/2014, já foi muito comentado e objecto de várias diligências por parte de Professores Universitários e parece que na próxima legislatura será rectificado... Supõe-se que se tratou de lamentável engano...
    14/8 às 15:15
    Maria Carlos Aldeia:
    Entretanto, como a AR está a "banhos", os abrangidos pelo diploma, se quiserem participar em qualquer simples colóquio universitário, mesmo que Pro Bono, sujeitam-se à ripada!
    14/8 às 15:44

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    1. «Lamentável engano», diz a menina. Para mim, o importante era saber - como, aliás, insisto - a razão que está por detrás desse 'engano'. É que não se trata de engano, não, porque é expressamente a alteração do teor do artº 78º do decreto-lei 498/72. E ...Ver mais
      14/8 às 15:44

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  3. Maria Carlos Aldeia:
    Poderá ter razão. Não estou, de todo, antes pelo contrário, a desculpar ninguém, pois penso que nunca houve uma perseguição maior à geração mais velha do que a que este Governo e apaniguados tem vindo a fazer. Mas penso que as leis são muitas vezes feitas levianamente. Parecem que são muitas as que voltam para rectificação. Se tiver sido intencional, então, foi um acto extremamente estúpido, pois era óbvio que a comunidade se rebelaria e isso daria resultados.
    14/8 às 16:00

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  4. Jorge Sanches da Cruz:
    Penso que a lei do voluntariado (Lei n.º 71/98, de 3 de Novembro), que regula e define uma forma de colaboração voluntária sobretudo em instituições de interesse publico, pode ser a forma de ultrapassar essa questão.
    14/8 às 22:10

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    1. José d'Encarnação:
      Não sei se na eventual regulamentação - se já a houve - dessa lei, algo se diz a propósito da incompatibilidade prevista no artº 78º do DL 498/72; no que li da lei 71/98, nada se diz a esse respeito, a não ser acentuar a gratuitidade do regime de voluntariado; ora, é precisamente esse aspecto que é contemplado na alteração ora feita.
      15/8 às 0:04

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  5. Aurora Martins Madaleno:
    Não querem ouvir os mais velhos, não querem ir às bibliotecas, não querem aprender mais do que o simples botão lhes diz. Hão-de preparar um bom enterro!
    15/8 às 23:19

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