domingo, 12 de outubro de 2014

Estocolmo em clima de Nobel

             Acaba de ser publicado por Edições Saída de Emergência o romance Desculpe Sr. Nobel, de Maria Helena Ventura (302 pág., ISBN 978-989-637-629-1), em que, a pretexto da investigação acerca do homicídio de um provável candidato ao Nobel da Literatura, se procura retratar o que poderia ser o ‘clima’ da cidade de Estocolmo, por ocasião das grandes decisões da Academia.
            Tive ocasião de fazer a sua apresentação, a 29 de Setembro, na Casa de Santa Maria, em Cascais, e do que então se disse aqui se procurará apresentar uma súmula.

Quem é a Autora?
            A resposta à questão mui simplificada está, porque uma síntese do seu currículo se encontra na badana do livro, sob a foto da escritora, natural de Coimbra: uma licenciatura em Comunicação Social, na vertente Jornalismo, um mestrado em Sociologia da Cultura. Na outra badana, reproduções das capas de alguns dos seus romances históricos mais recentes: A Musa de Camões [2006]; Afonso, o Conquistador [já em 6ª edição, de 2007 a 2014]; Onde vais, Isabel? [Março de 2008]; Um Homem Só (em torno da figura de Jesus Cristo) [Maio de 2010]; Cidadão Orson Welles [Março de 2011].
            Não será, porventura, mera coincidência que a protagonista de Desculpe Sr. Nobel se apresente como jornalista de investigação e, ainda por cima, é palinóloga, uma especialidade que tem toda a razão de ser: relacionável com o estudo dos pólenes, quando está em causa uma investigação criminal ocorrida em ambiente vegetal – e este é um dos aliciantes do romance.
            A protagonista – Joana Sobral Cid – é também amiúde a narradora e esse o motivo que me leva a suspeitar se, aqui e além, a autobiografia não estará latente.

Uma luz sobre o conteúdo
            Na quarta capa do livro apenas se levanta um pouco do véu, aliás, em palavras assaz enigmáticas, ainda que, na verdade, a maior parte do romance nos leve para um emaranhado de situações, assim em jeito de instantâneos passados em locais diferentes, simultaneamente ou não, com personagens com as quais nós vamos começar a conviver sem sabermos bem quem é que elas são, afinal.
            E, aqui, urge uma recomendação. É que só nas últimas páginas – já o enredo acabado e descansada a nossa mente – a Autora nos explica as «figuras mais importantes»:
            «O trabalho (escreve na p. 298) envolve um número considerável de personagens com nomes que podem confundir o leitor. Aqui ficam as mais relevantes no desenvolvimento da trama» e identifica as nove mais importantes e as onze que considera «personagens efémeras, pelo tempo que vivem no enredo, mas duradouras na lembrança, importantes para a sobrevivência do conjunto».
            Confundir o leitor? Oh! se confundem! Nomeadamente quando – quase no mesmo parágrafo, temos um Stefano Gotirelli que também é chamado de «italiano», «latino», Gotirelli, Got… Ou um Alex Gustafson, que é Alex, Gus, Gustafson!...
            Recomendação primeira, portanto: pôr um marcador na pág. 298 para lá ir, pelo menos nos primeiros tempos, a fim de melhor saber de quem se está a falar, porque a Autora, embora o negue, acaba mesmo por nos enredar na trama de um romance policial. Mas que, a princípio, não sabemos onde é que estão os bons e quais são os maus, isso não sabemos – e é aliciante! E coitada da Joana, que, também ela, não sabe exactamente para onde é que se há-de virar!...
            Permita-se-me, porém, um parêntesis: como é que Maria Helena Ventura diz? Este trabalho não pretende ser… «Trabalho»!? Não deixará de ser curioso o uso deste vocábulo – decerto espontâneo, que saiu ao correr da pena. A Autora tem-se por uma trabalhadora da escrita. «Trabalhadora» em risco de despedimento ou de falta de emprego, como é praga quotidiana? Talvez, no íntimo, assim pense. Eu creio, que, no caso vertente, despedimento não haverá e falta de emprego também não, ainda que bem sedutora, enigmática e imprevisível e incompreensível se nos vá a vida…
            Não serão muitos os escritores que vivem – sobrevivem… – do trabalho da escrita: são muitíssimos, porém, os que não vêem na escrita um trabalho, aparentemente não há suor nem lágrimas, nem deveria haver, por conseguinte, recompensa pecuniária. Retomo, pois, a pág. 300, onde vem a tal palavra trabalho, uma vez que, já o disse, à maneira dos livros em árabe, também este Desculpe Sr. Nobel, precisa de uma leitura primeiro das últimas páginas, pois o importa dizer… das pp. 300 e 301 há-de ler-se também logo a princípio. Explica aí Maria Helena Ventura que procurou retratar uma «realidade ficcionada» e resume depois a vida de Nobel, de certo modo para justificar o título do romance, que não é, como à primeira vista poderia parecer, a biografia do benemérito que, há quase dois séculos, nasceu em Estocolmo (mais propriamente a 12-10-1833) e que, como uma das personagens do romance, morrerá às duas da madrugada de 10-12-1896, «incompreendido, desacreditado, traído, sozinho na sua casa de San Remo», quando hoje, pela herança que deixou, é «amado por milhões de pessoas na medida certa» (p. 301) e Maria Helena Ventura desabafa: «Um rico sem afecto é tão pobre como a mais pobre das criaturas».
            Porque, na verdade, Desculpe Sr. Nobel constitui – por entre o quase inconcebível emaranhado da sua trama – um verdadeiro hino aos afectos.
            Acentuarei, pois, os aspectos que mais me seduziram.

A estrutura formal
            Em 53 pequenos capítulos, identificados por numeração romana e sem título. Estamos agora aqui; no seguinte, estamos noutro lado com outras personagens cuja ligação com as anteriores se não compreende (se urgentemente se não for às tais páginas 298 e 299, para descodificação cabal); e o capítulo sucessivo pode levar-nos para outro espaço e outro tempo. Estamos em Estocolmo, daqui a pouco em Uppsala ou em Aljezur ou em S. Pedro do Estoril. Acho que dava bem para guião de filme ou telenovela…
            Recordo como foram pedradas no charco O Dia dos Prodígios, de Lídia Jorge, ou O Memorial do Convento, de Saramago. O primeiro com uma pontuação oral (pôs-se o ponto onde a personagem fez a pausa na fala); o segundo sem pontuação nenhuma e cada qual que se atavie como melhor lhe der na gana.
            Hoje em dia, parece-me que isso de pontuação à antiga, discurso directo ou indirecto ou directo à maneira de indirecto, foi chão que deu uvas e a gente entende-se bem sem essas manigâncias que os clássicos inventaram.
            Maria Helena Ventura usa a pontuação. Há travessões de quando em vez. Pontos de exclamação acho que não – a capacidade de nos admirarmos anda cada vez mais arredia de nossas vidas!... O mais interessante, porém, é a distinção entre as falas e as descrições. Está tudo misturado, sem aquela ‘história’ dos dois pontos parágrafo travessão. Vai tudo a eito, que na vida não há tempo para essas pausas obrigatórias.
            Por isso, o estratagema – que muito me agrada – é itálico para o discurso directo e redondo para o indirecto. Tudo seguido, pois então! Economiza-se e dá-se uma ideia mais exacta da realidade contada.
            Gostei.

Um retrato da Suécia
            Outro aspecto que não poderia deixar de sublinhar: o livro é um retrato da Suécia. Digo bem, da Suécia. Não apenas da capital, Estocolmo, em que a maior parte da acção se passa, a propósito da cerimónia da atribuição dos prémios Nobel – no antes, no durante e no depois; mas também da intelectual Uppsala, com a sua universidade, a mais antiga da Escandinávia, fundada em 1477, natural alfobre de Prémios Nobel (8 dos seus docentes foram galardoados já e há mais quinze que tiveram com Uppsala íntimo elo de ligação). Recordo que foi das primeiras universidades a integrar o chamado Grupo de Coimbra, logo nos primórdios da criação do Programa ERASMUS, na década de 80, e muitos dos nossos estudantes para lá têm ido estudar e sorver a longos haustos os ares que respiraram Celsius (1729) e o botânico Lineu. O campus de Uppsala com os seus edifícios históricos tinha, por conseguinte, que estar presente nas páginas do Desculpe Sr. Nobel.
            No caderno Ípsilon do Público de 26-09-2014, vem nas páginas 12-14 extensa reportagem sobre «O ‘caso’ Donna Tartt». Trata-se de uma romancista norte-americana nascida a 23-12-1963, de ascendência italiana. O artigo, assinado por Isabel Lucas, justifica-se, a propósito do seu mais recente livro, O Pintassilgo¸ publicado em 2013 e galardoado com o Prémio Pullitzer. Em ‘caixa’ (estou a referir-me ao texto de Isabel Lucas), assinala-se que Donna Stratt «continua a escrever à mão em blocos e diz que usa a Internet apenas para consultas, como endereços de restaurantes ou, no caso de O Pintassilgo, para consultar o Google Earth, auxiliar para construir melhor ambientes das cidades onde a acção decorre».
            E porquê este parêntesis? Porque, neste aspecto, Maria Helena Ventura é muito clara, na pág. 302:
            «Cabe aqui um agradecimento especial ao Ricardo Santa Clara Matos, residente em Estocolmo, donde me enviou dados importantes para compor o trabalho com menos desvios. Apesar de minha estada na Suécia ter sido uma inspiração, não foi tão duradoira quanto desejaria. Muito ficou por descobrir, inventariar e admirar na sua plenitude».
            Na verdade, o que mui agradavelmente nos surpreende nos livros de Maria Helena Ventura é a minuciosa descrição dos ambientes – as ruas, os parques, as casas, as cores, o movimento, a gastronomia típica (“A gastronomia é um dos espelhos de um povo”, proclama na p. 36), os hábitos… Quando li o seu Orson Welles, acabei por a acompanhar pelas ruelas de Roma; aqui, passeamo-nos, de facto, por Estocolmo e deixamo-nos enlevar pela cidade e suas gentes. E se não logramos pronunciar bem os topónimos nem os nomes das iguarias (têm uns bolinhos de canela, os kanelbulle, e há o bufet smorgasbord p. 73), o certo é que estamos perante um ambiente exótico explorado e a explorar. E vê-se que Estocolmo e Uppsala, nomeadamente, lhe ficaram no coração. Creio bem que os suecos que vivem em Portugal hão-de gostar de o reviver.
            Confesso uma fraqueza: quando vi a referência ao restaurante panorâmico Erik’s Gondolen, não resisti e fui ao Google – e lá estava tudo: os elogios à vista panorâmica sobre Slussen e Gamla Stan, sobre o porto, a cidade velha… «É como se entrassem num barco suspenso atravessado por feixes de luz», escreve Maria Helena Ventura (p. 153). A comida, excelente; o local, apropriado para aniversários de casamento, romanticamente celebrados a dois. Claro, Joana preferiria, no momento, um daqueles nossos à beira-mar, com o «marulhar das ondas, o cheiro da maresia…». Mas… Joana, não se pode ter tudo!...
            Pronto, estamos mesmo no âmago dos ambientes suecos e o livro constitui – também por isso – aliciante para uma visita.
            Ah! Nem falta a referência a um dos mais célebres monumentos funerários pré-históricos da Suécia, o Anundshögen, datável de entre a Idade do Bronze e os primórdios da Idade do Ferro, assim ao jeito do nosso cromeleque dos Almendres (perto de Évora), mas muito mais imponentes: os esteios estendem-se por uma área de 60 m de diâmetro e têm, alguns, 9 m de altura. A inscrição, em caracteres rúnicos, dá conta, segundo uma interpretação, da homenagem feita a Heden, irmão do lendário rei Anund – daí o nome.
            Nada escapou, portanto! E se uma tese de mestrado houvéramos de fazer acerca de Desculpe Sr. Nobel, muitos seriam, por consequência, os fios a pegar nesta imensa meada com que Maria Helena Ventura nos quis brindar. E, já agora, diga-se que o título vem no discurso de uma candidata ao prémio que, ao verificar as manobras de bastidores que, necessária e obviamente, precedem a escolha dos nomeados e, depois, dos laureados, lhe pede desculpa por, no meio de tudo isso, mui frequentemente se esquecer a enorme importância do seu legado: «Desculpe, Sr. Nobel, pelos que semeiam abismos de ingratidão!» (p. 262).
            Perdoar-me-ão, no entanto, se foco mais dois aspectos que (entre tantos!) me deliciaram.
 
Uma escrita poética
            Prende-se o primeiro com o poético rigor da escrita.
            Dir-se-á que nada há de mais antagónico: o rigor e a poesia! Creio que não. E, nesse aspecto, colho exemplos de algo que a mim muito me seduz – cá está a «Universidade da Vida»!... – e que à Autora não deixou indiferente: o dia nas suas contínuas mutações; o dia, reflexo de nós; o dia-sentimento; o dia que, momento a momento, nos cumpre saborear:
  • «O dia amanhece sereno, com o sol a beijar francamente a ramagem humedecida» (p. 100);
  • Acordam abraçados, «a soletrar o silêncio da manhã» (p. 210);
  • «O dia amanhece com a cadência da chuva a lacrimejar nas vidraças» (p. 232);
  • «[…] Uma manhã com gotas de chuva para dissolver rugosidades na melodia do percurso» (p. 297 – é a última frase do livro);
  • «Mergulhando nos braços da tarde há muito anoitecida» (p. 82);
  • «A noite acaba de fechar a Terra à chave» (p. 88);
  • «Como se a água da chuva, lá fora, fosse dissolvendo […] as borras do afecto antigo» (p. 96).
  • Escondia-se o sol «no horizonte como um dístico raiado de vermelho – uma porta encantada para outro mundo que um dia hás-de explorar – dizia ele» (p. 261).
As frases lapidares
            E se a Autora polvilha, aqui e além, o seu texto de frases lapidares de autores célebres que a enlevaram, também semeou no seu livro algumas outras que poderão vir a ser incluídas num álbum de citações:
  • «Quem não perdoa a competência alheia, arranja sempre forma de a macular» (p. 38);
  • «Sorriso que não é franco não passa de um esgar» (p. 63);
  • «Há fracções de tempo em que o olhar agarra fios de luz vividos e os entrelaça com outros por viver, a cabeça ocupada a tecer relatórios de ontem, de amanhã. Hoje, agora, esta porção de existência ao alcance da mão, fica a planar na linha do horizonte, mais longe do que passado e futuro. Porque não alimentamos a vontade de a vestir de cores alegres? Só a cor sépia do que foi e o matiz do que será têm magia?» (p. 72);
  • «Vinte minutos numa espera ansiosa podem parecer um ano ou mais» (p. 72);
  • «As amizades bem construídas têm paciência mítica» (p. 77);
  • «O ruído é um bom pano de fundo para a partilha de um segredo» (p. 88);
  • «Com o rosto pálido como uma folha de papel reciclado» (p. 91);
  • «A magia da vida é o inesperado» (p. 107);
  • «O Presente, a única estação que amanhã já é Passado, que hoje já é Futuro» (p. 132);
  • «Há tantas coisas, tantas pessoas, que existem durante anos no mesmo espaço e permanecem invisíveis…» (p. 252);
  • «O acto de dar liberta, o de receber constrange» (p. 268).
A magia do amor
            Proclama Maria Helena Ventura que escreveu um romance de amor. E não há dúvida que é na descrição dos momentos prenhes de lirismo que a Autora se aprimora, na recriação imagética dos sentimentos.
            Das muitas passagens relativas à ternura crescente entre Joana e Anderson Bengtsson, transcrevo a descrição do primeiro encontro, quando ainda nada se sabe do que poderá vir a acontecer:
            «(…) desde a ideia imemorial da metade que buscavam. Os seus olhos castanhos nos dele azuis-escuros descobrem o princípio do tempo, o fim da busca, o graal.» (p. 103).
            E, pouco depois:
            «[…] Um beijo demorado como a pressão de um carimbo, um selo de pertença. Enquanto uma corrente tépida lhe percorre o corpo, retém o até sempre, no orvalho do sorriso. […] Há muito tempo que não sentia aquele íntimo dedilhar de cordas – fogo, afago, palpitações intermitentes de aguaceiro. Sempre desejara que um olhar bastasse para encontrar a fonte… um olhar que ousa, que logo se retrai e que volta a ousar num chamamento mudo. Teria sido agora?» (p. 109).
           Foi – digo eu.
            «[…] O toque de magia que vibra uma vez, na vida.
            Há um dedilhar de guitarras longe, num barco ou numa cabana, acompanhado pelo chilreio da Natureza» (p. 221).

            E assim nos apetece ficar!

Publicado em Cyberjornal, edição de 11-10-2014:

1 comentário:

  1. Muito obrigada, Prof. José d'Encarnação. Uma análise exaustiva de um livro que um dia vou ler. Fiquei motivada.

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