domingo, 21 de fevereiro de 2016

Eu conheci um poeta…

            Eu conheci um poeta transmontano que demandava, amiúde, um lugar ermo. Havia por lá penedias com letras, a explicar, há dois mil anos, como se devia desenvolver o sagrado ritual, até atingir o êxtase, lá no derradeiro penhasco, subindo os degraus, em comunhão com o génio do lugar. «Soletro com a devoção que posso a linguagem religiosa dos nossos avós, gravada nestas fragas sagradas»…
            Eu soube de legados imperiais romanos que não resistiram ao feitiço de vir, peregrinos, até àquele promontório sobranceiro à foz do rio de Colares, honrar o Sol e a Lua e extasiarem-se, também eles, a ver o deus mergulhar no Oceano, infinito para eles inexplicável…
            Eu tive um vizinho que, espreguiçando-se num bocejo alto, abria a janela a saudar o amanhecer.
            Eu tive um professor-poeta, trasmontano ele também, mestre que morreu novo há mais de 50 anos e eu ainda sei de cor estes seus versos:
 
                        Janela, abre-te assim de par em par
                        Deixa-me entrar a luz, a madrugada
                        A aurora fresca, a rixa combinada
                        Dos melros no lameiro a assobiar!

            Eu tenho cravos-do-ar no meu jardim e, ali recostado nos começos de tarde, gosto de os admirar, assim pendurados, sem raízes, a viverem do ar, a recordarem-me aquela frase do longínquo e sempre presente Sermão da Montanha: «Olhai os lírios do campo! Como eles se vestem – e não semeiam nem colhem!»…
            Eu sei de um poeta a quem deram uma melodia e ele foi até à orla marítima de Cascais ao Guincho e o marulhar das ondas, encavalitado na brisa, num ápice, logo ali lhe trouxe inspiração…
            Eu conheço este poeta, que, um dia, depois de muitos dias, uma semana após muitas semanas, caiu em si, abriu serenamente a janela, recusou-se a ouvir o compassado tiquetaque do relógio, virou decididamente as costas ao frenesim quotidiano em que se lhe gastavam os dias e… viu!
            E foram momentos – andamentos? – que transformou em prelúdios, qual Chopin, num antegozo de maravilhas que, de repente, parece que se deu conta de que jamais devidamente as apreciara: o pardal que saltita; o pinheiro sagrado; o castanheiro, génio tutelar; a roseira que se enlaça na vida; as cigarras exuberantes; o gato que passa, silencioso…
            Outro olhar assim surgiu, a verberar o corrupio da Grande Lisboa, que não faz caso de belezas verdadeiras, as das plantas e dos animais que por elas bem despreocupadamente se passeiam… E assim se perde a Vida!
 
            «Que somos nós, se não ganhamos o tempo de viver a poesia das coisas belas?
            Que luz, que inocência, que ternura nos escapa ao sermos tomados pelo mercado dos interesses?»

            Urge, pois, proclamar que, «hoje, o Homem é de lugar nenhum. Vai a todo o lado sem enraizar. Vive virtualmente. […] Passa por tudo sem possuir nada».
            Há-de, pois, regressar-se à serenidade que nos falta:

                        Entre a tília o pinheiro e a oliveira
                        Os pássaros volteiam.
                        E nada há que me encha
                        De maior tranquilidade
                        Do que estes voos saltitantes
                        A entrelaçarem a manhã
                        De sonho e de verdade              (p. 19)

            «Prelúdios» são apenas 25 poemas. Curtíssimos. Só dois com duas páginas. Alguns de quatro versos, mas não são quadras – que a rima só aparece de quando em quando, assim como quem não quer coisa, natural, espontânea.
            Debruçado na janela, o Poeta agarra a ideia; mas depois vem outra e encavalita-se na primeira, volta atrás e dá um salto para a frente. É a riqueza que absorve a determinar esse alternar, como o do pardalito além. Quadros vários, pinceladas vigorosas. E as gravuras negras de João Alves Antunes, manchas que sugerem e espicaçam, a condizer com a volúpia de… irmos por aí!...
            Um hino à serenidade de que se precisa. Por isso, Prelúdios, de Carlos Carranca, não é livro para se ler de afogadilho. Ou melhor, não se consegue resistir à tentação de o ler de afogadilho, mais um, mais um e mais um… Depois, porém, tu sentes a necessidade de voltar atrás, a reler um a um, a saborear, a ler por detrás das palavras, a dar largas à imaginação… Sem peias. Na vontade enorme de contrariar o nosso dia-a-dia virtual. Enraizando-nos, de facto.
            Mui eloquente libelo contra a desumanização da nossa vida esta humanização da paisagem da sua Lousã!
                                                     José d'Encarnação
Coimbra Taberna, 20-02-2016
Na apresentação do livro «Prelúdios», de Carlos Carranca
 

3 comentários:

  1. Aurora Martins Madaleno
    21/2 às 20:05

    Bem haja! Voltei atrás e reli e copiei, porque gostei disto: .... «Que somos nós, se não ganhamos o tempo de viver a poesia das coisas belas? Que luz, que inocência, que ternura nos escapa ao sermos tomados pelo mercado dos interesses?»

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  2. Margarida Lino
    21/2 às 18:56
    Como eu gostava de saber escrever assim, a poesia que amo e trago dentro de mim!

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  3. Obrigada, Professor, por me continuar a deleitar com os seus temas e escrita. «hoje, o Homem é de lugar nenhum. Vai a todo o lado sem enraizar. Vive virtualmente. […] Passa por tudo sem possuir nada». Verdade, é como se tudo na vida fosse efémero, desprezível!E nem se apercebem de quanto perdem da vida! Fico curiosa por conhecer mais este filho de Carlos Carranca.

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