sábado, 18 de maio de 2013

Mui estranhas distracções

            Estão os responsáveis por Cascais mui apostados em colocar a vila nas bocas da Europa, mediante a organização de eventos cuidadosamente badalados pela estranja.
            Enchem o olho as «Conferência do Estoril», aonde acorreram – gratuitamente, claro! – nomes sonantes da intelectualidade mundial.
            Fomos solícitos a fazer filmes sobre a excelência do nosso País, muito acima das vulgares nações europeias.
            Invadiram-nos as motos e foi um espectáculo!...
            À força, porém, de querermos ser ‘europeus’ – carago! Sempre o fomos, não? – corre-se o risco de esquecer aqueles pormenores distintivos, identitários.
            Em Manique, travava-se – ao que parece – luta titânica para que o muro de sustentação das terras na estrada sul fosse de alvenaria, para condizer com o típico do local. Essa batalha ganhou-se, a custo; perdeu-se, ao que parece, a guerra de haver acompanhamento arqueológico numa zona tão sensível como é o rossio dessa aldeia, cujo solo é, seguramente, escrínio a não esperdiçar. Esperdiçou-se.
            Diante da vetusta capelinha de Murches, que é monumento, levantou-se um muro de betão. Ergueram-se vozes, incrédulas perante a insensibilidade de quem apresentou o projecto assim, a trouxe-mouxe, sem o mínimo respeito pelo «Génio do local». Vai remediar-se, dizem-me; mas o mal foi feito, o dinheiro gastou-se, a incompetência imperou. Talvez incompetência não o seja, afinal; eu chamar-lhe-ia, antes, ignorância, falta de sensibilidade histórica e ambiental, ordens dadas ao jeito do senhor ministro que é de altíssima craveira intelectual, tão alta, tão alta que não consegue enxergar a realidade em que (não) vive.
            Soube, há pouco, que também passara pela cabeça de alguém iluminado que Fernando Pessoa era um produto turístico de monta, a trazer para Cascais, que o pagode tira fotografias ao lado dele, no Chiado, por obra e graça da inteligência do Professor Lagoa Henriques, e se tira lá, também tira aqui, ora tem que ser! Vamos a isso! Então o homem não concorreu a bibliotecário aqui? Foi preterido, é certo, a favor (dizem!) de um cascalense, pintor, com provas dadas no domínio da biblioteconomia e da Arte, pois não se tratava apenas de uma biblioteca que estava a concurso mas de um Museu-Biblioteca! Deixá-lo! Podiam ter escolhido o Poeta, não podiam?... Isso foi obra de cunha, de certeza, oh! se foi!...
            Pois traga-se Pessoa para Cascais. Instale-se no museu para que não foi nomeado. E para isso – pasme-se!... – desmonta-se a única exposição arqueológica que Cascais tem! Velharias, cacos partidos, uns ossinhos (um deles até mantém anel d’ouro na falange, mas não interessa!…), tudo lá dos tempos pré-históricos, sem dinossáurios nem nada! Abata-se a exposição, prante-se nela o gabinete do injustiçado Pessoa, pois então!
            Aquelas peças pré-históricas vêm em todos os livros da especialidade, são únicas e até já se fizeram sobre elas mui lustrosas publicações? Deixá-lo! F. Pessoa é que é bom! Toda a gente o leu de fio a pavio, com todos os heterónimos – e é preciso que se proclame alto e bom som que o senhor concorreu a bibliotecário em Cascais, assim bem perto do Atlântico, para estar bem sossegado e poder escrever mais e mais, e que foi preterido por uns miseráveis de então, a favor de um tal de Carlos Bonvalot, de renome internacional (parece…), e que até fez, enquanto conservador, trabalho digno, exemplar… Contudo, isso não é produto turisticamente vendável, pois não?
            O que ora mais me espanta é o império da Ignorância. Do fazer por fazer, sem estudar, sem pensar, sem a preocupação de ouvir pareceres abalizados. Dizem-me que isso tem um nome e que é o que se está já a dar aos governantes europeus: são… autistas! Acho que é um nome bonito. Rima com artistas, com especialistas, com turistas… Vem mesmo a calhar!

            Publicado em Jornal de Cascais, 08.05.2013, p. 6.

1 comentário:

  1. Rui Branquinho: Nada é estranho! Até a Agenda Cultural já ficou sem o Cultural! Em Cascais tudo pode acontecer. Força, Professor! Um abraço.
    21 h. de 27-05-2013

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