terça-feira, 30 de dezembro de 2014

E, afinal, a geringonça não caiu!...

             Sobejamente conhecido o autor! António Torrado (Lisboa, 1939) tem dedicado a sua vida, desde os 18 anos, à escrita, mormente à literatura infantil, em que magistralmente se revela a sua brilhante aura pedagógica! Mais de 120 livros escritos, uma actividade imparável, em que se assinala o facto de ser, agora, o professor responsável pela disciplina de Escrita Dramatúrgica na Escola Superior de Teatro e Cinema e dramaturgo residente na Comuna.
            Quando lhe pediram uma auto-biografia, respondeu ser essa uma tarefa difícil:    «Tenho passado a vida a dar voz, em mil histórias, a gentes e coisas tão autênticas e fantasiosas como eu sou e serei. Os meus livros que falem por mim».
            Enorme curiosidade, pois, a minha, na estreia, a 20 de Dezembro, no Mirita Casimiro, da peça Atirem-se ao Ar (escrita em 2003 e publicada em 2012 pelo Caminho), que Pedro Caeiro encenou, com versão cénica de Miguel Graça, cenografia de Fernando Alvarez, música e som de Gonçalo Alegria (que também está em cena como locutor de rádio) e direcção de montagem de Manuel Amorim. No elenco, jovens ligados ao Teatro Experimental de Cascais.
            Diga-se desde já que – como é habitual – houve adaptações ‘locais’ do texto e – ao que me consta – cenas da Escola Profissional de Teatro de Cascais, onde Miguel Graça também é docente, acabaram por ser transpostas para o palco. Não! Nada de conclusões precipitadas! Aquela algazarra de endiabrados alunos, aquela aparente bandalheira – ainda o público se está a sentar e já tudo parece andar numa fona!… - nada têm a ver com a seriedade suma das aulas reais! Quiçá alguns tiques professorais, aquele veemente «calou!» (do professor, tão ironicamente incarnado por David Esteves!) e a rígida disciplina que de imediato provoca… Tudo é, porém, altamente sadio e a brincadeira que se instala, estudantes de teatro a fazerem de conta que representam, com uma deliciosamente azougada Beatriz Costa (bem interpretada por Raquel Oliveira), é mero pretexto para dar corpo a uma contestação: a dos senhores dos dirigíveis contra a (para eles) impossível viagem aérea de Gago Coutinho e de Sacadura Cabral de Lisboa ao Rio de Janeiro, em 1922. E há, naturalmente, saborosas picadelas pelo meio: quando, na conferência de imprensa (tinha de haver uma conferência de imprensa, pois então, para tão grande feito!...), alguém os acusa de estarem a desbaratar dinheiros públicos, logo alguém segreda: «É jornalista, dá-lhe um desconto!»; ou a observação em rima: «Se tivéssemos dinheiro como tínhamos dantes, o palco estava a abarrotar de figurantes!»…
            «Uma brincadeira de crianças efectuada por adultos, talvez seja isso o teatro» – escreve Miguel Graça. Na verdade, a intenção didáctica de contar como foi essa extraordinária aventura de dois portugueses («É difícil para nós, hoje, tão habituados ao progresso científico, capazes de ter a informação do mundo na palma da mão - e com GPS, para não nos perdermos – imaginarmos o que seria atravessar o Atlântico Sul num pequeno hidroavião […] sem ver terra nem a luz do dia quando caía a noite», é ainda Miguel Graça), essa intenção didáctica parece revestir-se aqui de uma brincadeira de crianças, que só o génio de dois pedagogos, o de António Torrado e o de Miguel Graça, poderia arquitectar.
            Gostámos. Deliciámo-nos. Rimos. Por exemplo, quando todos param e olham para uma porta imaginária, donde poderá vir o professor para os pôr na ordem («Não é ninguém! A porta está fechada!». O professor só aparecerá mesmo no fim, é Miguel Graça e os espectadores não resistem a uma boa gargalhada também! Bruno Ambrósio, José Condessa, Marta Correia são alunos; mas, dentre eles, há quem se metamorfoseie em Patacho (Bruno Bernardo), companheiro do Dr. Hélio (João Cachola, ex-major, doutor engenheiro…!). Sérgio Silva é Gago Coutinho; Filipe Abreu, Sacadura Cabral.
            Parece fácil quando se vê; tudo, no entanto, é estudado ao pormenor, o gesto, os figurinos, o som…
                E aquilo dá mesmo a ideia de ser tudo uma geringonça danada. A questão é: «Como é que o avião, tão mais pesado do que o ar, pode vencer o balão, tão menos pesado que o ar, e conquistar o espaço aéreo, dantes apenas frequentado pelos passarinhos?».
                Pois é. O certo é que eles conseguiram. Eles, os dois cientistas, convencer-nos; eles, os actores, divertir-nos.
                E ficam as lições. A do hidroavião e uma outra, que Miguel Graça não hesita em sublinhar na folha que nos é distribuída: «As personagens deste Atirem-se ao Ar não têm para onde ir e, por isso, inventam uma nova realidade». Para concluir:
                «Quando a crise financeira e económica e os conflitos religiosos e políticos preenchem o nosso quotidiano, é bom recordarmos que existiram homens destes, não só exemplos de coragem, mas sobretudo um paradigma daquilo que o Homem, quando foi Homem, sempre quis ser, alguém capaz de controlar o próprio destino, inimigo do desconhecido, capaz de ir sempre mais longe».
                A peça continuará em cena de 3 a 18 de Janeiro, aos fins-de-semana, com sessões especiais para escolas.

Publicado em Cyberjornal, edição de 30-12-2014:

           







           

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