segunda-feira, 10 de setembro de 2012

No Centenário da República (1910-2010) – Saneamento e Reintegração

             Numa edição de Casa da Cultura António Bentes, São Brás de Alportel, veio a lume, com data de Abril de 2012 e ISBN: 978-989-95726-5-2, o livro No Centenário da República (1910-2010) – Saneamento e Reintegração.
            Aí se apresenta, fruto de acurada investigação histórica sobre dois casos, um arguto e revelador estudo sobre o fenómeno do saneamento político.
            No âmbito dos muitos estudos inspirados no centenário da implantação da República, a autora, Aurora Martins Madaleno, lembrou-se de analisar o processo de saneamento e reintegração de duas personalidades em duas épocas distintas da história portuguesa; distintas no tempo, comparáveis nas atitudes.

Bernardino Machado
            Sem dúvida singular, a história de Bernardino Machado (Rio de Janeiro, 28.3.1851 – Porto, 24.4.1944). Dinâmico político, serviu o Partido Regenerador durante a Monarquia, ocupou diversas pastas ministeriais na I República, tendo sido eleito, por dois períodos, presidente da República: de 6-8-1915 a 8-12-1917 e de 11-12-1925 a 31-5-1926. Exilaram-no as gentes do Estado Novo e foi oficialmente exonerado do lugar de catedrático de Philosophia Natural da Universidade de Coimbra (Faculdade de Philosophia), por despacho publicado a 27.4.1931.[1]
            Fiel aos princípios por que a revolução de 25 de Abril se norteara, a governação chamou a si esses processos de saneamento do Estado Novo, nomeadamente os de figuras de notável valor cívico e cultural que o regime saído do 28 de Maio de 1926 decidira aniquilar, por não se pautarem com as suas ideologias. Um dos processos revistos foi o de Bernardino Machado. Assim, por despacho de 4.10.1983, o Ministro da Educação José Augusto Seabra determinou, «ouvido o Reitor da Universidade de Coimbra», que Bernardino Machado fosse reintegrado, a título póstumo, «no lugar e com a situação que detinha no momento da sua exoneração», acto que se considerou «de elementar justiça», pois também ele prestara «à Pátria e ao Estado Português um contributo de alto relevo cívico, na luta pela liberdade e pela democracia» (p. 15).
            Teve eco público essa reintegração, cujo elevado significado simbólico foi devidamente realçado, por exemplo, quer pela Câmara Municipal de Famalicão, que havia encetado diligências nesse sentido (veja-se local do Jornal de Notícias de 25-07-1983), quer pelo próprio Jornal de Notícias de 5-10-1983, que abre notícia, em grandes parangonas, na 1ª página. Curiosamente, porém, a nível universitário parece que não terá havido especial reacção, pois que nomeadamente as actas dos órgãos académicos tanto da Faculdade de Ciências como da de Letras de Coimbra dessa altura nada assinalam a esse propósito.[2]
             Permita-se-me que, a talhe de foice, teça dois comentários ao que foi escrito.
            1º) Bernardino Machado procurou desenvolver, pioneiramente, a sericicultura, o fabrico de seda natural a partir da criação de bichos-da-seda, retomando uma política que já vinha do tempo do Marquês de Pombal, que apoiou, por exemplo, a criação da Real Fábrica das Sedas do Rato (Alvará de 6 de Agosto de 1757). Trata-se de uma actividade produtiva nem sempre tida em conta para a economia do País e que passou por muitos altos e baixos. Assim, no âmbito do interesse pela recuperação do património local, lançou a Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, na década de 90, o programa «Os Caminhos da Seda», que incluiu o projecto do Centro Interpretativo do Real Filatório, destinado – com uma exposição sobre a história do complexo e da sericicultura na região, assim como do espólio recolhido nas intervenções arqueológicas realizadas no local – a servir de apoio na visita às ruínas do que fora o Real Filatório de Chacim, nascido no reinado de D. Maria I, por ser essa zona do País particularmente adequada à plantação de amoreiras. No Centro se previa o funcionamento do Núcleo de Estudos Sericícolas, «pólo de investigação sobre a história da sericicultura na região, com um centro de documentação e bibliografia».[3]
            2º) Do percurso académico de Bernardino Machado se escreve, na pág. 8, que obteve «a lente de catedrático de Filosofia em 1879». Trata-se de um lapso de escrita ao correr da pena, porque a autora, noutro livro publicado pela mesma altura, ao explicar o que é um professor catedrático, escreve claramente: «É o chamado Lente da Universidade»;[4] contudo, se o refiro é não apenas para o explicitar mas também para, a esse propósito, lançar luz (outros já também o fizeram, é certo, e com muita pertinência) sobre a polémica gerada pela afirmação de Dilma Roussef, a 31 de Outubro de 2010: fora eleita… presidenta do Brasil, versão que, um tanto incompreensivelmente, também José Saramago apoiou! Na sua origem, como é sobejamente conhecido, a palavra lente significa «o que lê», como vidente é «o que vê» e presidente «o que preside». Trata-se de um particípio presente uniforme. Na verdade, voltando à palavra «lente», o professor da Universidade, seguindo a vetusta tradição medieval, lia perante os alunos o livro ou os apontamentos que redigira e os estudantes bebiam as suas palavras. O ensino era, predominantemente, oral. Desta tradição nasceriam as «sebentas», livros policopiados (e, mais tarde, impressos) que compendiavam as lições ministradas e que, na gíria, o estudante era convidado a «empinar». Lente era, pois, uma categoria a que, na actualidade, corresponde a de professor catedrático, o topo da carreira docente universitária.

Jorge Fernandes Moreira
            O outro exemplo aduzido por Aurora Madaleno diz respeito ao Dr. Jorge Fernandes Moreira, que, aquando  do 25 de Abril, exercia funções, como inspector superior, na Direcção-geral do Ensino Superior. Foi, naturalmente, saneado, sob pretexto de ter pertencido à Legião Portuguesa: Sottomayor Cardia, por despacho de 18-1-1977 (que duas vezes no livro se transcreve – p. 18-19 e 62-63), determinou que lhe fossem suspensos o vencimento e o exercício de funções, privando-o também dos «seus direitos políticos plenos».
            Compreende-se, pelo que se lê no ponto 2.3 do livro, primeiro que a autora terá acompanhado de perto o percurso de Fernandes Moreira, por ter sido ela própria técnica do mesmo Ministério da Educação; segundo, que o saneado foi reintegrado no serviço em 1982, certamente por ter sido deferido requerimento apresentado pelo próprio à Comissão de Análise de Recursos de Saneamento e Reclassificação, de acordo com o estipulado no decreto-lei nº 232/78, de 17 de Agosto; contudo, eventuais ocorrências ou diligências feitas entre o saneamento e a reintegração não são referidas. Também de José Moreira pouco mais se diz no livro do que «nasceu numa Aldeia da Beira Alta» (p. 16) e que as exéquias eclesiásticas por ocasião do seu óbito se celebraram em S. Domingos de Benfica (Lisboa), a 11-7-2000.
A concluir, Aurora Madaleno apresenta o seu livrinho como «uma homenagem à vitória da boa convivência, da democracia e da liberdade, sempre no respeito pelos direitos dos cidadãos e na defesa do bem comum» (p. 20), não sem antes ter referido (p. 19) o desaparecimento da documentação relativa a este tipo de processos e de sublinhar que, hoje, devido a «estarmos mais familiarizados com os meandros das instituições políticas e o carácter dos políticos, quer pela liberdade de imprensa, quer pelos debates nas campanhas eleitorais, quer, ainda, pelos processos de difamação dos políticos na própria comunicação social» (p. 19-20), já se compreendam melhor «os motivos por que se “saneiam” uns e outros cada vez que mudam os partidos do Governo» (p. 20).
            «A melhor forma de comemorar o Centenário da República» – considera a Autora este seu depoimento, por ter dado relevo à importância da «dignidade da pessoa humana» (p. 21).
            As p. 23-68 são preenchidas com a transcrição dos diplomas referidos no texto. O prefácio (p. 5-6) é assinado por Afonso Cunha Duarte, que pondera ter este livrinho contribuído para preencher «uma das lacunas das comemorações» do Centenário da Implantação da República, justamente por ter exemplificado o «fenómeno do saneamento político» (p. 5).

                                                                       José d’Encarnação


Publicado na edição de 10-09-2012, de Cyberjornal:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=16995&Itemid=30



[1] Cf. ROSA, Elzira Machado, «Bernardino Machado e a Universidade de Coimbra», Revista de História das Ideias, Coimbra, 12, 1990, p. 257-267, que, no entanto, apenas aborda "O pensamento pedagógico de Bernardino Machado" e "A sua função na Universidade" (agradeço ao Doutor Azevedo e Silva esta informação).
[2] Agradeço ao Doutor Carlos André e ao Dr. Júlio Ramos a gentileza de terem compulsado a documentação existente; e ao neto de Bernardino Machado, Manuel Sá Marques, a prontidão com que me fez chegar os recortes da sua colecção, que integram, aliás, o Museu Bernardino Machado de Famalicão e de que se faz eco no blogue que mantém sobre o seu avô: http://manuel-bernardinomachado.blogspot.pt/
[3] Veja-se, por exemplo, de Carla A. GONÇALVES, a reportagem «Real Filatório de Chacim: Nas ruínas de um grande complexo industrial», publicada, a 23 de Setembro de 2010, no jornal Mensageiro de Bragança.
[4] Aurora Martins MADALENO, «VilAdentro – Quem pergunta quer saber», Casa da Cultura António Bentes, São Brás de Alportel, Abril de 2012. ISBN: 978-989-95726-6-9, p. 65.

1 comentário:

  1. Um cordial e apertado abraço!
    Vou transcrever o texto no meu blogue; obrigado.
    Manuel Sá Marques

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