segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Fio das Harpas, de Fernando Miguel Bernardes


            José d'Encarnação[*]

            Resisto a passar as páginas, antes de me consciencializar do que vou ler.
            O Fio das Harpas.
            Harpas contém ressonância antiga, límpida, a desdobrar-se em ondas sonoras pelo espaço. Não um espaço qualquer! Harpa requer recolhimento, em pequena sala aconchegada, em casebre de pedra nua perdido na encosta num aninhar de lareira, sombra vasta de árvore a acolher rebanho em hora de acarro – pois seja: que o tilintar da guizalhada não se compadece com o vibrar das suas cordas…
            Fio – com fio se faz um tecido para aquecer mágoas e confortar rudezas; com fio se cortam maldades, se talham esconjuros… Por um fio se passa, se vive, se morre, se grita – que ele também são fios as nossas cordas vocais.
            O Fio das Harpas promete, pois, sossego, sim, a maviosa envolvência; mas também o gume que não hesite em cortar!
            Vamos ver!
            São quase 200 páginas de caminho. Deixar-nos-emos embalar!
            Olá!... A caminhada promete – que por ali andou o lápis azul, a confiscação compulsiva. E vozes do nosso actual – e eterno! – descontentamento. Baladas. O Zeca, o Zé Jorge, o Adriano… Estamos, pois, em boa companhia! Recorda-se a velha casa e os anciãos que a encheram. Os companheiros de viagem – idos ou ainda presentes, perdidos nunca!
            E cá está a árvore! As folhas são os fios das harpas que resistem, a cantar, mesmo que com vinagre insistam em lhes regar as raízes. Que elas sabem morrer de pé! E sempre haverá flores, mesmo que o chão seja sombrio! Sempre – porque nós, porque o poeta o quer!...
            «Fico contente se versos faço», se para isso ainda tenho liberdade, pois, no mar, «eu vejo clamores pela paz». No mar, nos guindastes de aço, nas chaminés fumegantes, nos bancos das escolas… Canto a terra – não pelo bem que ela tenha, mas pelo que eu para ela sonho; canto o povo:
 
            «Se poeta sou
            Sei a quem o devo»
 
            – estes são, seguramente, dois dos versos mais significativos de Fernando Bernardes, que acrescenta:
 
            «Ao povo a quem dou
            Os versos que escrevo».

                        Da sua vida rude
                        Colhi a poesia
                        Tentei quanto pude
                        Dar-lhe melodia (p. 26)

            Assume-se o poeta como um arauto, um elo de ligação. Não está sozinho, não, porque o que escreve é dele e das gentes com quem lida e luta, das terras em que se situa e, livre, quer criar raízes. Há, pois, este diálogo sempre! Não se perde em filosofias, em rodriguinhos de estilo, não. Pão pão queijo queijo – mas sempre de uma forma esbelta e, se possível, cantada, ritmada, prenhe de melopeia...
            Que se aprenda, que se baile, que se trauteie num ápice – porque apetece, qual rio que brinca por entre as pedras, pássaro que saltita de ramo em ramo, onda que desmaia na areia mas quer deixar rasto…
            E todo o Universo é convocado para a sinfonia, num conluio amoroso que não é só o da pessoa amada, porque, aqui, amada é a mulher (sim), no lirismo a que não há poeta português que, algum dia, consiga escapar, mas são as gentes, os irmãos…
 
            «Apeia-se o rei e o trono
            põe o pé ao pé do meu
            tu comigo somos dois
            quem ficou só já perdeu» (p. 110).

                        «Se estou ao pé de ti
                        foge-me o tempo entre os dedos…
                        Se longe alongam-se os dias
                        como em prisão, nos segredos» [1962] (p. 44).

                                               Esta noite choveu muito,
                                               de manhã fui ver o mar.
                                               Esta noite amei-te tanto,
                                               Sereno fiquei – de te amar… (p. 70).

            E, por falar em lirismo, sentir-se-ão bastas vezes os ecos das cantigas de amigo e de amor d’outrora e de sempre, que o poeta é trovador mesmo e sonha em ir de porta em porta, de corte em corte, de arraial em arraial, a dizer de sua justiça – «quero a paz do tempo conquistado» –, a colher cravos onde outrem teimou em semear abrolhos:
 
            Amarga-me a boca
            Do travo da vida
            – minha voz tão solta
            Onde foi perdida?

                        Menino de escola
                        Alegre e ridente
                        – onde foi perdida
                        Minha voz contente? (p. 31)

                                               Ai flores, ai flores do verde pino
                                               Se sabedes novas do meu amigo
                                               Ai Deus i o é?

                                                           Ai flores ai flores do verde prado
                                                           Se sabedes novas do meu amado
                                                           Ai Deus i o é?

            Uma delícia este ritmo de embalar:
 
                                   vi-te vi-te verde
                                    na pedra a cismar… (p. 84)

                        vermelho vermelho sangue…

            No Inverno bato o queixo
            – qualquer dia, qualquer dia!...

                        No Inverno aperto o cinto
                        – qualquer dia, qualquer dia!... (p. 34)

            Irmão camponês, acredita: qualquer dia, qualquer dia. E esse dia virá! «Que também na lama do Nilo vicejam as flores de lótus»… (digo eu). Que «um Homem mesmo longe mete medo» (p. 95).
            Ecos do nosso folclore, em que até a cana verde, algo de comezinho no nosso dia-a-dia actual – quem há aí que veja uma cana verde, que oiça o sussurrar do vento pelo canavial, que saiba, até, onde há canaviais?!... – até a cana verde é ponto de referência. Nela pousou a esperança, apesar do vento, ela aguentou-se lá. Por pouco tempo, parece, porque… pelo restolho se perdeu… (p. 89-90).
            E a mulher dos farrapos mexia e remexia no caixote. Tirou meio pão duro, tirou pente velho, tirou uma flor. Mirou-a, mirou-a e… sussurrou: «Bom dia!». (p. 50) – porque, nós queremos e proclamamos: «Hoje não há cifrões mas uma flor!» (p. 112).
            E relemos a história do Fio de Água – tem Alentejo fronteiras, terras largas vista grande… Alguém hoje se admira que Fio de Água por lá ande?» (p. 62)
            E ele há também por i poemas a partir de mote, quase à moda de além-Tejo:
 
            Papão negro ave torva
            Muito bonda o desatino
            Vai-te embora em má hora!
 
            Deixa dormir o menino…
                                                           Um soninho descansado. (p. 82)


            Pronto, já li. Já saboreei. A longos haustos. Num comboio cheio de ir e vir Cascais – Cais do Sodré – Cascais. E continuei no autocarro e assentei-me no banco do meu jardim, que, junto às brancas orquídeas, aos antúrios bem vermelhos, com o Maio ao colo, ronronando embora, tinha de acabá-lo já. Sem tardança, que apetecia ler, ler… até final.
            Acabei e apetece-me agora voltar atrás, a outras páginas que anotei para releitura serena.
            Que linda a história do buraquinho onde o menino depositou pedras de sal, um pirilampo, suor e esperança, antes de adormecer. De manhã, nada nascera. A avó enganara-o na esperança e ele perguntou: mas não há aí uns senhores que põem sal, pirilampos.... e não se preocupam nem com o suor nem com a esperança e… a coisa resulta?… Como é, avó?  (p. 83).
            Essa flor não nasceu, menino. Nem outras.

            «Renascer uma rosa, amigo Urbano, quando não há Primavera há tanto ano!...» (p. 101).

            E sabes porquê? Porque sob as frondosas faias se treinam cavalos, homens, cães-polícias, enquanto Pedro, na sua boa fé, vai construindo prédios… (p. 106). E quando soar a palavra pão, virão tiros, pegadas, baba – confusão! Porque… «Há o que diz que sim e diz que não / conforme a meia cara com que fala» (p. 115) e o importante senhor «viu escadas subiu escadas / ficou ao nível das gruas / e ao nível dos cifrões / Não ao nível das pessoas» (p. 130), embora alicie: «Come o milho, passarinho, vem cá abaixo à minha mão»; mas… «o passarinho tem asas: antes morto que no chão! (p. 124).
            Vem o título do livro de um poema (p. 138), breve como o são quase todos, de que me prendeu, de modo especial, a 1ª quadra, numa invocação às «doces aves» que – com esse fio das harpas – vão tecendo o tempo… São as andorinhas da capa, em revoada no azulejo, sedentas de insectos, em algazarra, não são, Fernando? Primavera após Primavera… Este, um poema de 1980, onde, se calhar, carecia haver em cima, ao jeito de José Gomes Ferreira, uma breve frase, em itálico, a contar do motivo da inspiração e da frase, porque, de seguida, há estranhas perguntas à mãe: sobre esse mesmo tempo, sobre açucenas por regar, sobre penas que se revivem. Este tempo que voa… tem doçuras, tem flores imaculadas, tem penas de doer…
            E quase nos apetece ficar no rochedo, à beira-mar, ouvindo o piar das aves, o marulhar das ondas… e as açucenas por regar…
            Poeta, que queres tu? Que o tempo não voe, que as flores nunca murchem, que as penas desapareçam? Não, poeta! Estás a querer o impossível, ainda que amor de mãe tudo suplante e saiba inventar melopeias e te ofereça os perfumes que inebriam as penas!...

            Disse amor e fez o gesto
            Disse amor e deu a mão

            Este é um daqueles momentos a eternizar, Fernando! E que bonito que é!

            «Disse amor e pensou homem
            disse homem pensou irmão». (p. 139)

            Nisto nos levam a palma os poetas, quando, com palavras simples, são do tamanho do mundo!
            Termina-se na «construção por vir». Diria eu, a construção que se faz, que se quer fazer, que urge fazer! Para que, na realidade, haja no topo as flores e, espraiando a vista por zimbórios e terraços, de uma vez por todas, dali se veja luz, muita luz e nunca, nunca, a terrível mordaça que silencia, que impõe negras vendas nos olhos, que castiga o grito e ameaça a revolta!
            Que, afinal, Amigos, é de fraternidade a mensagem, fraternidade em construção, uma construção difícil, sim, mas tremendamente consoladora:

            Pedra sobre pedra
            a mão
            o muro abraça!  (p. 154)

                                                           Abracemo-lo!


[*] O texto reproduz a apresentação feita, a 27 de Maio de 2009, no Palácio das Galveias, em Lisboa, do livro em epígrafe, editado por Mar da Palavra – Edições, Lda., Coimbra, Maio de 2009; ISBN: 978-972-8910-39-6.

1 comentário:

  1. João Rebuge 2016-02-07:

    A Poesia na "mão" do poeta diz e fala... e nos olhos de quem lê ganha significado(s)! Vários brilhos que nascem de mil e uma faces de um mesmo diamante, por vezes em bruto, mas do mesmo modo belos!

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