quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

E contam-nos a vida toda!

            Ainda me lembro. Creio que se chamavam “interurbanos” e ainda não havia nem alfas nem intercidades. Eram, mesmo assim, os que, mais confortavelmente e num tempo então razoável, me levavam de Santa Apolónia a Coimbra B e me traziam de regresso. Em 2ª classe, comboios de compartimentos para oito passageiros. Quando calhava ter junto de mim velhotes (o que eu, na altura, chamava de ‘velhotes’…), era a viagem toda a ouvir as suas histórias vida afora.
            Ocorreu-me essa imagem, no almoço doutro dia, quando, a meu lado, se sentou um veterano da guerra no Ultramar. Foi todo o tempo a história das emboscadas, das baixas, do helicóptero a voar baixo, das ostras que à socapa se iam saborear para descontrair da tensão…
            Precisam os velhos de desabafar, de contarem o que foram e fizeram.
            Devias escrever isso em livro de memórias, Eugénio! – perorei eu.
            Que não tinha paciência.
            Dizia-me aquela vizinha a rondar os 60 anos, quando lhe sugeri a frequência do Centro de Dia, onde até estavam várias das suas amigas:
            Eu?! Para ao pé daquelas velhas que só sabem falar de doenças?!... Deus me livre!
            Assim João Roque, nas suas já citadas Digressões Interiores (p. 95):
            «Tempos difíceis para envelhecer. Por tudo e por nada, os velhos perturbam-nos e incomodam-nos. Nos cafés ou nos bancos de jardim quando, sem mais aquela, se sentam à nossa beira, metem conversa e desatam a contar-nos a vida toda. Nos restaurantes quando sôfregos comem a sopa e deixam cair o guardanapo e o talher. Nos sanitários onde molham o chão e nós molhamos os sapatos. Nos serviços públicos e nos supermercados onde empatam as filas ou nos tiram a vez».
            Retratos, enfim, que nos fazem pensar e nos ajudam a chupar até ao tutano o osso de cada dia.

                                                                     José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde) nº 656, 1-02-2015, p. 12.

 

5 comentários:

  1. Jose Martins Colaço:
    O teu comentário recorda-me as viagens de comboio, que fiz entre a Regua e S. Bento, no inverno de 1968. Cumpria o serviço militar em Lamego, e, nas dispensas, vinha à Amadora, viajando no comboio-correio, que partia da Regua à meia-noite e chegava a S. Bento às seis da madrugada. Os bancos eram de madeira, em compartimentos de oito. Mas as viagens eram uma festa. As pessoas dirigiam-se ao Porto pelas mais diversas razões, e levavam consigo "mantimentos" nos cestos de verga e garrafões de vinho.para matar a sede. Quer um bocado de presunto ?... Amigo, prove este vinho... Vai para a Guiné?...Tenho aqui uma broa com bacalhau seco, coma ... Tenho um filho em Angola que está nos Comandos, se for para lá diga, que me faz o favor de levar-lhe uns chouriços... Coma um bocado desta regueifa...

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  2. Teresa Silva:
    Não gostei, adorei! Amo as pessoas e tenho a dizer que dos meus já vividos 57 anos as melhores partes foram com toda a certeza "gastas" a ouvir histórias de "velhotes", em casa, nos comboios, nas breves viagens de autocarro; aliás é uma das razões pelas quais gosto de andar nos transportes públicos. Eu pela parte que me toca já estou a começar a cumprir o mesmo papel: passo a vida a contar aos meus filhos e netos histórias que já as minhas avós me contavam, rezas, ditos e outras sabedorias e bruxarias que são o substrato da vida vivência e cultura!

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  3. Filipe Desmet:
    Caro José d'Encarnação, isso faz-me pensar o quanto me sinto rico quando consigo fazer com que o meu tempo escorra à mesma cadência dos 'mais velhos' (como se diz em África), e fico a ouvir, ouvir e ouvir o que eles têm para me dizer.

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  4. Agradeço ao Zé, à Teresa e ao Filipe os comentários atrás exarados. Certamente receberam também aquela história do filho que está a ler no jardim e o pai a perguntar-lhe «aquilo é um pardal, não é?». E o filho, chateado com as interrupções constantes. Quando o pai morre, ele descobre num caderno de memórias do pai que ele, em pequeno, era assim, sempre a perguntar e o pai não se importava nada de ser interrompido e respondia-lhe. Um velho é mais do que um livro, é... uma biblioteca!

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