sábado, 18 de novembro de 2017

Crianças em Portugal - A luz e as sombras

            O tema «crianças» é, mui provavelmente, um dos que mais obriga a ter em conta a componente geográfica, inclusive num espaço bem delimitado como o território português: o contexto urbano e o contexto rural.
            Por outro lado, os novos paradigmas socioeconómicos e culturais da década de 60, a nível europeu, que, entre nós, os ideais de Revolução do 25 de Abril prontamente aceitaram, alteraram substancialmente a vida familiar, como célula (queiramos ou não) da sociedade.
            Assim, pouco a pouco se desmoronou a família alargada, saudável convívio de gerações, que mutuamente se influenciavam, mormente na transmissão de saberes – de avós a filhos e netos. As novas exigências económicas (leia-se: o desmesurado aumento do consumismo) e o exercício simultâneo de uma profissão fora de casa tanto dos pais como de avós (homens e mulheres) determinaram que a Escola passasse a ser o espaço primordial da aprendizagem da vida em sociedade. A omnipresença da televisão – quer com programação infantil específica quer porque os programas de maior interesse para os adultos passam à hora das refeições – provocou drástica diminuição do diálogo intergeracional. Recordo que, um dia, meu filho Pedro, já adulto, me disse que o que mais recordava como enternecedor da sua meninice eram os momentos em que eu lhe pegava ao colo. Compreendi o alcance da observação, até porque esse é também o mimo preferido dos gatos e – caso curioso! – os pais facilmente cedem o colo ao seu gatinho de estimação, mesmo enquanto vêem as novidades no smartphone, e nem sequer se apercebem de que também ao filhote pequeno agradaria esse aconchego…
            Nos ambientes rurais, em que o espírito de comunidade e de vizinhança se mantém, ainda as crianças vêm para a rua brincar (jogar à bola, às escondidas, à apanhada…), o que constitui boa aprendizagem de convivência. Nos ambientes urbanos – em que mais se faz sentir também a «ditadura» da propaganda consumista (o menino calça ténis de marca, usa mochila com os heróis da banda desenhada do momento…) e maior é a insegurança – até os programas televisivos infantis estão a ser substituídos pelas infinitas possibilidades que o tablet oferece e os próprios pais passam mais tempo nas redes sociais do que a preocupar-se com a vida real, a das pessoas que estão a seu lado. Têm corrido mundo imagens de amigos e famílias inteiras que, estando juntos, não olham sequer uns para os outros, tão embrenhados estão na veloz sucessão de notícias ao alcance do simples deslizar de um dedo…
            Rapidamente, as crianças aprendem a mexer nos aparelhos, com uma facilidade que deixa os adultos estupefactos e, amiúde, preocupados também (as crianças passam de um programa para outro, normalmente protagonizados por violentos super-heróis, dotados de super-poderes, onde matar o inimigo é o objectivo principal…), ainda que, mesmo a nível escolar, o computador e o tablet estejam a ser opção educativa de vulto.
            Contra o inegável perigo do exacerbado individualismo e da progressiva perda de identidade cultural – de que todos estamos, de facto, a tomar clara consciência – as entidades públicas locais não hesitam em criar parques infantis, em proporcionar espaços verdes para a prática desportiva de novos e de menos novos, em preparar estruturas apetecíveis para que as famílias ou grupos de amigos aí possam piquenicar e relaxar.
            De consequências nada saudáveis do ponto de vista psicológico é a atrás referida perda de identidade. Ou seja, importa que a criança volte a sentir-se membro de uma comunidade, cujas raízes deve conhecer. Não há necessidade, obviamente, de explicitar noções de ‘património’, ‘beni culturali’, ‘heritage’… Tal consciencialização está bem patente em iniciativas ( de escolas ou de bibliotecas, por exemplo) como a «hora do conto», a ida de avós às turmas para narrarem as suas experiências e histórias, o regresso à prática dos jogos tradicionais...
            Outras das preocupações a que, felizmente, se está a dar muita atenção é a saúde. Aumentou substancialmente a natalidade. Diminuiu drasticamente o número de mortes prematuras e mesmo de nados mortos: amiúde se noticiam verdadeiros «milagres» de sobrevivência pós-parto em condições assaz difíceis. E estão a diagnosticar-se mais precocemente doenças que, até há pouco, só em idade adulta se revelavam: anomalias auditivas ou visuais, síndrome de asperger e todo o cortejo de deficiências psíquicas que implicam tratamento específico e para as quais se estão a concretizar acções com êxito em contexto escolar, inclusive em estabelecimentos especializados como as CERCI – Cooperativas de Educação e Reabilitação de Cidadãos com Incapacidades, largamente acarinhadas pela população em geral.
            Um panorama risonho, este? Perfumada rosa isenta de espinhos?
            Não. Um quadro tem necessariamente luz e sombras e estas acabam por realçar aquela. E, neste âmbito, há, de facto, sombras que me preocupam:
a)      a facilidade com que, por motivos fúteis, se contraem e se desfazem matrimónios, não se acautelando devidamente o equilíbrio psíquico dos filhos;
b)      a impossibilidade prática – por razões de segurança – de as crianças irem e virem sozinhas da Escola, a pé ou mesmo utilizando transportes públicos;
c)      as notícias, que já são mais frequentes, de maus tratos e mesmo de cruéis assassinatos em ambiente familiar ou do bullying em ambiente escolar;
d)     as enormes peias burocráticas que envolvem os processos de adopção, a que (suspeita-se) não serão alheios, em alguns casos, esquemas de corrupção;
e)      a pressa com que usam os tablets, em rápido movimento digital, pressa que fomenta a distracção, o passar pelas «coisas» sem as ver, a falta de reflexão, pressa de que os próprios adultos dão exemplo (veja-se nos transportes públicos…).
 
            Portugal não será, nestes aspectos, diferente dos demais países europeus. Parar de vez em quando, para vermos melhor as nossas crianças constitui, por isso, mui salutar exercício. E esse, agora, tivemos oportunidade de fazer.
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Portugal-Post (Correio luso-hanseático) [Hamburgo], nº 62, Novembro de 2017, p. 28-31
A brincar à roda

A jogar à bola

A jogar ao pião


A brincar na praia
        Fotografias dos azulejos que ornamentam a zona que dá para o jardim do «Casal de Monserrate» (primitiva casa do engenheiro Álvaro de Sousa), onde hoje funciona o Centro de Dia Engº Álvaro de Sousa. Agradeço à sua directora, a Dra. Graça Fernandes, a possibilidade de os reproduzir.

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