sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Eu não queria escrever esta crónica

            Não queria.
            Há dois minutos que não andamos. Uma jovem bonita faz sinal ao motorista:
            ‒ Foi você que me levou ao Largo Camões? ‒ perguntou com sotaque brasileiro.
            ‒ Eu não.
            ‒ É que eu deixei o telemóvel no carro!
            ‒ Um telemóvel?!... Esqueça!
            Continuamos a passo de caracol. Toca o telemóvel do motorista. Oiço frases entrecortadas:
            ‒ E agora?... Não deixes alguém ocupar a tua cabeça sem pagar!... Vamos olhar em frente!... E como é que foi isso?... Força, rapaz!
            Voltou-se para mim, telefonema terminado, e explicou:
            ‒ Este moço foi estudar para o estrangeiro e veio com ideias novas. Criou um galinheiro com máquinas sofisticadas. O negócio estava próspero. Esta noite, roubaram-lhe 40 galinhas e uma das máquinas sofisticadas. Eu gosto dele, é dinâmico, empreendedor!
            Estava um caracol ao nosso lado e quase nos ultrapassava. Disse o motorista:
            ‒ Eu herdei um terreno do meu avô. Plantei-o de árvores. Tinham pegado há pouco tempo e roubaram-mas. Não desisti e voltei a plantar. Agora, ardeu tudo e, no dia seguinte, já não tinha sequer os troncos queimados. Vieram roubar-mos!... Isto está tudo a saque!
            O carro não avançava. O motorista voltou-se para mim:
            ‒ Vê como está o trânsito. Continuamos ou fugimos?
            ‒ Sim, fugimos! ‒ respondi prontamente.
            Tomámos um percurso alternativo e depressa cheguei ao destino.
            No silêncio do comboio cheio, a pergunta «fugimos?» martelava-me na cabeça. É que um quarto da minha família, da geração a seguir à minha (filhos, sobrinhos, netos…) também ela já fugiu. Vive no estrangeiro.
            É por isso que eu não queria escrever esta crónica!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 718, 1 de Novembro de 2017, p. 11.

13 comentários:

  1. Vitor Barros 3-11-2017
    Muito boa esta crónica. Abraço.

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  2. E eu não a queria ter lido! Mas li-a, e ainda bem! Fugimos?

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  3. Que texto tão simples e conciso.... Belo texto Professor

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  4. Julio Manuel Pereira
    Mais uma história triste da chicoespertice nacional de um Portugal a saque a todos os níveis.

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  5. Berta Duarte
    Um abraço, Prof. José d' Encarnação. Saudades do seu convívio.

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  6. Maria Mattyes
    Sem dúvida, uma crónica analítica da actualidade portuguesa. Estamos metidos em grandes trabalhos, Amigo Zé!!!

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  7. Albino Ladino
    Parabéns pela crônica está ótima. Um abraço amigo.

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  8. Adelaide Chichorro Ferreira
    Welcome to the club.

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  9. Glória Marreiros
    É divina a sua escrita, estimado professor José d'Encarnação! Abraço!

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  10. Gisela Campos
    Mais uma das suas belas histórias e crónicas... Continuo a ler as suas crónicas, histórias publicadas no Jornal da Região, saudades da sua presença em belos encontros.

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  11. Como poderemos mudar tudo isto?Como?
    E Portugal ainda é considerado bom para se viver...

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  12. Fernanda Valdez Carreiro 4/11 às 23:11
    Expedientes de oportunistas que vale sempre denunciar, caro Zé Manuel. Abraços nossos

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