domingo, 14 de janeiro de 2018

Acerca de «As Pessoas de Minha Casa», de Júlio Conrado

             Há sempre a tendência de se catalogar um livro. De um modo geral, porém, a classificação aponta num sentido e, amiúde, o livro é mais do que isso, por o autor nele fazer reflectir muito da sua personalidade e da sua experiência de vida. Autobiografia? De certo modo, sim. Mesmo que o homem fora uma ilha – contrariando a peremptória afirmação em contrário, de John Donne – ou até mais ainda nessa circunstância, parte significativa de si estaria lá.
            Não é autobiografia, no sentido próprio do termo, o romance As Pessoas de Minha Casa, que Júlio Conrado publicou (Âncora Editora, Lisboa, 3ª edição, Junho de 2017); mas muitas das páginas hão de ser entendidas como tal. Inclinar-me-ia a catalogá-lo – mania de leitor, já se vê! – como romance de costumes.
            Nascido em Olhão, a 26 de Novembro de 1936, Júlio Conrado acompanhou os pais, ainda criança, para Carcavelos, numa época em que o Algarve não oferecia risonhas condições de vida e a Costa do Sol, bem vizinha da capital, se imaginava, para alentejanos e algarvios, como recheio de boas oportunidades. Tinha, pois, oito anos quando acabou a II Guerra Mundial e foi em Carcavelos que passou meninice e juventude e o mundo dos anos 50, em que prestou serviço militar e começou a encarar a vida profissional. A loucura dos anos 60 apanhou-o já homem feito e, pela Revolução de Abril e anos subsequentes, era já o escritor, o crítico literário, revelando a sua larga propensão para a escrita, que nunca haveria de largar, independentemente da ocupação profissional.
            É As Pessoas de Minha Casa a história da sua família? Não. «Casa» entendo eu como «ambiente», «horizonte em que me fui embrenhando». Estamos, todavia, perante uma 3ª edição. E um dos aspectos que mais pode intrigar o leitor á a circunstância de haver nessa edição «palavras somadas e suprimidas». As suprimidas visaram dar maior fluidez e propriedade ao discurso; as somadas derivam do facto de uma das personagens que se supôs retratada nas anteriores edições se ter rebelado num manuscrito a que o autor, por bom preço, acabou por ter acesso em leilão e, devido a isso, forçado se viu a incluir pormenores olvidados ou voluntariamente omitidos, nomeadamente da vida íntima.
            A «parte primeira» (p. 11-86) tem por título «Guerra, caça e amores, por um prazer cem dores»; a «parte segunda» (p. 87-151) agarra o título do livro todo e chama-lhe o Autor «romance intercalar». Há uma «parte terceira» (p. 153-228), de mui significativa temática, «Oração aos restos». E os restos são o necessário «regresso à Vila das Quintas» (Carcavelos), a paisagem da infância e da juventude, com «paragem no Bairro de Alcântara». No «Epílogo» (p. 229-230), retomamos o contacto com o Eurico, a Judite, o Alfredo, o Aurélio e a Vanda, de que nós já nos esquecêramos, por estarem seus nomes consignados nas intrigas amorosas, políticas e interesseiras vividas na parte primeira, nos conturbados meses que se sucedem à Revolução de Abril. O «Verão quente» de 1975 e suas sequelas na vida familiar e afectiva - é neste aspecto pessoal que se insiste, mais do que em considerações político-partidárias, apenas afloradas aqui e além.
Rapazes em Carcavelos, na década de 40
do século passado. O mais alto é o autor.
            Os capítulos têm nome. Resistiu o Autor a essa tendência, dir-se-ia surrealista, eu chamo-lhe de preguiçosa, de os identificar com números, sem palavras, como quem tem medo de se expor ou pensa que o leitor deve entender por si o que está escrito sem necessidade de antolhos. Sou contra. Há que sugerir, arriscando mesmo, eventualmente, a recriminação do leitor. E Júlio Conrado não hesitou e deu nomes bem sugestivos.
            Adequa-se cabalmente a linguagem a cada um dos cenários. E essa constitui, sem dúvida, a grande virtude do escritor, a demonstrar uma maturidade invejável. Dificilmente haverá quem não se deixe levar pela narrativa, surpreendido com o rigor vocabular, que representa, a meu ver, um dos grandes aliciantes formais do romance.
            Transcrevo uma das passagens iniciais do capítulo «Olhe, botão»:
            «Noutro tempo, ao garanhões davam às chantras um xis de gorja para ouvirem delas a história de como se tinham metido no putedo. Agora andavam elas ao avio dessa mercadoria. Preocupadas com as melancolias dos clientes» (p. 14).
            Ousadia minha será; estas linhas poderão, no entanto, prenunciar o que se encontrará ao longo do livro:
            ‒ Em primeiro lugar, a crueza realista com que abertamente se abordam as questões da sexualidade, desde as secretas manifestações do seu despertar, ainda na meninice e na adolescência (namoricos, apalpões, descobertas físicas, clandestinas espreitadelas…) até à desbragada conversa de caserna, sem tabus.
            ‒ Depois, o referido perfeito domínio da terminologia adequada a cada momento; neste caso, a gíria do que se poderia designar de submundo – os garanhões, as chantras, a gorja, o putedo…
            ‒ O sintomático aproveitamento do instante para lançar luz, discreta mas certeira, sem alardes filosóficos, a um generalizado estado de espírito: «as melancolias dos clientes»…
            ‒ Por fim, como mais adiante se verá, a ancestral reminiscência do vocabulário algarvio, patente aqui no uso espontâneo de «avio».
            Não resisto, por isso, a não transcrever o início do primeiro capítulo da parte terceira, intitulado «zona anterior/interior»:
            «Recolho as vitualhas da mesa da experiência. Restos que valem o esforço de uma oração final em seu louvor. Um remorso de ponta de navalha em riste leva ao balanço dos horrores e dos cromos da era juvenil. Nesta hora frágil. Enquanto aguardo o momento da grande explicação entre os deuses e os demónios sobre o meu destino» (p. 155).
            Quem há que não reconheça aqui, no curto martelar dos períodos, a frase meditada, a palavra prenhe de sentido, na mescla entre a imagem seleccionada e o apontar claro de um sentimento expresso?
            Ecoam-me na primeira frase, sem querer ou não, os versos, salvo o erro, de Guerra Junqueiro: «Pois quem come as vitualhas leve também as migalhas que sobram da nossa mesa!».
            Aqui, a mesa é a experiência, um vocábulo que o Autor usa, nesse instante, quiçá pela primeira vez, avesso, como se proclama, a elucubrações metafísicas. Mas de experiência trata o livro. Da vida. Por isso a quer louvar. E vem-lhe à mente um outro termo com o qual não está familiarizado, creio. Saiu-lhe. Oração. Pode ser prece, pode ser discurso. Ambiguidade propositada. E a palavra ‘final’ deu o mote. Tempo de balanço. Da era juvenil ocorrem-lhe apenas (parece) os horrores e os cromos. Suspeitamos que ‘cromos’ terá duplo significado: o da gíria, o figurado, personagens estereotipadas, estáticas, vazias; e o concreto, dos álbuns de colecções – jogadores de futebol, raças humanas, artistas de cinema… “Horrores” é, por seu turno, palavra forte, a denunciar o que foram, na verdade, os anos da guerra e as amarguras por que então se passou.
            Outra palavra lhe surgiu, também ela incomum na sua prosa: remorso. Não terá, decerto, o sentido moral, de contrição por acções menos éticas praticadas; igualmente não o vejo num lamento, porque, em circunstâncias idênticas, o mesmo todos nós voltaríamos a fazer o que se fez, porque assim era preciso. Será, pois, um aguilhão que dói, a tal «ponta de navalha em riste»…
            Não perpassam pelos escritos de Júlio Conrado sentimentos religiosos. Transposta, porém, a fronteira dos oitenta, o de trinta e seis é capaz de sentir, agora, a perspectiva de uma «hora frágil», enquanto aguarda «o momento da grande explicação entre os deuses e os demónios» sobre o seu destino. Bem saboroso, o voluntário eufemismo; indisfarçada ironia, a embrulhar sentimentos. Aliás, desse tom se reveste o que vem a seguir:
            «Quero ir decente desta para melhor, de espírito enxuto, alma polida, aspecto apresentável. E com a crónica intacta, sem rasuras, do que fui enquanto por cá andei. Os deuses incitam-me ao asseio, à elegância e à boa escrita, sempre é cerimónia única na vida de uma pessoa, ir de camisa engomada e vestir o fato dos domingos é obrigatório para que nela, a cerimónia, haja um mínimo de classe» (p. 156).
            E é nesse momento – dizem – que o regresso às origens se antoja inevitável também:
            «Havia na família gestos de a-ver-o-sol, o lastro da paisagem nevada das salinas, lembranças de caíques ao sul, de aragens de ria, a par desse falar em canto que tombava, estrangeiro, onde a palavra tinha diferente melodia. Módulos perfeitamente perfeitos, agarrados uns aos outros por pátios, açoteias, labirintos de paredes caiadas, ladrilhagem moura, cântaros a imitarem os trazidos pelo invasor berbere, selhas para todas as lavagens, da roupa, do corpo, dos pratos e talheres, versos de Loulé e zangas de Tavira casados na comunista Olhão» (p. 157).
            Vêm, portanto, ao de cima as «oralidades velhas que definhavam sem remédio na caldeirada étnica da Vila das Quintas» (Carcavelos): o biqueirão alimado, a sopa de abóbora, o xarém, a sobremesa de figos de pita, «estamos xarengados», «tem avondo», marafado, almariado… O falar algarvio no seu melhor!...
            Romance de escritor bem maduro, de saber acrisolado numa vida cheia, que As Pessoas de Minha Vida – queira-se ou não – superiormente retrata.
            Romance a reler com a atenção que a primeira leitura apenas suscitou e ora importa consolidar.
                                                                       José d’Encarnação

            Publicado em Cyberjornal, 14-01-2018:

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