quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Cascais em meados do século XX

             Propõem os puristas que só pode fazer-se História, no sentido científico do termo, passado bastante tempo sobre os acontecimentos ocorridos. Não deixam de ter razão, porque os anos ajudam a sedimentar ideias e também motivações de outrora amiúde permanecem ocultas até ao dia em que alguém se decide a revelá-las ou um investigador topa inesperado documento elucidativo.
            Há, pois, alguma relutância em fazer a História de Cascais em meados do século XX. Teremos pulsões escondidas ainda por vir ao de cima; há, contudo, uma História dos acontecimentos que pode escrever-se, embora nem sempre se compreenda por que determinada decisão camarária se tomou num rumo quando se estava mesmo a ver que poderia ter sido tomada noutro. E nem para isso nos servem as actas das sessões!...
            Penso que, para fazer essa história, assume papel relevante a imprensa local e regional. Em Cascais como em Arruda dos Vinhos ou em Castelo Branco. Nessa época, os jornais eram mais da comunidade, até contavam de casamentos, baptizados e falecimentos. E os autarcas não se amofinavam quando o correspondente de uma localidade clamava contra o mau estado dos caminhos ou a falta de água ou o cheiro nauseabundo dos esgotos. Tudo isso se interpretava como exercício de cidadania e era bem aceite. E a imprensa fazia-se eco não apenas das deliberações camarárias ou das propaladas intenções de autarcas mas também do que se passava nas colectividades, dos bailes de benefício em prol do vizinho que estava para ser operado e não dispunha de meios para o efeito...
            Por conseguinte, não há, a meu ver, possibilidade de fazer uma história real da Cascais dos anos 50 e 60 sem o recurso miúdo aos jornais, que eram, na altura, o A Nossa Terra, propriedade do Grupo Dramático e Sportivo de Cascais, e, a partir de 25 de Abril de 1964, o Jornal da Costa do Sol.
            Direi que foram de grande efervescência na vila os anos 60, como, de resto, o foram por essa Europa Ocidental, porque o Maio de 68 não apareceu do nada, compreende-se. Designadamente no âmbito da Cultura, Cascais deu cartas no Teatro (criou-se o Teatro Experimental de Cascais), nas exposições de Arte (por exemplo, na Junta de Turismo da Costa do Sol, por clarividente iniciativa de Serra e Moura, e na galeria do Casino), nas manifestações musicais (quem há aí que não lembre os festivais de jazz, no Pavilhão dos Desportos, pela sabedora mão de Luís Villas-Boas?)… E também os jornais da capital mui gostosamente se faziam eco desses acontecimentos.
            Há, todavia, um outro meio a não menosprezar: os livros. Não apenas os livros de Cultura propriamente ditos – e nunca será de mais realçar a importância da chamada «Colecção do Centenário», em boa hora lançada pelo Município, para comemorar os 600 anos de elevação de Cascais a vila – mas os livros de ficção que têm Cascais como cenário.
            Um nome tem de se referir: o de Correia de Morais. As suas delirantes crónicas sociais publicadas e muito lidas nos jornais lisboetas acabaram por ser reunidas em volume. E eu não posso deixar de salientar dois: O Meu Dono e Eu (1989) e O Céu Precisa de Gente (1990). Ainda não se pensava por i em relatar o dia-a-dia através do sentir de um animal doméstico e já o Corgo escalpelizava a sociedade que o dono frequentava. Por outro lado, O Céu Precisa de Gente, sob a aparência de um livro religioso, é a deliciosa descrição das noites cascalenses, porque S. Pedro encarregara o Diabo de descer a Cascais para carrear almas para o Céu e o Diabo mete-se por tudo quanto é sítio na vila e não há ninguém que almeje repousar no Paraíso!...
            Perguntar-se-á a razão destas evocações. A motivação próxima – e disso haveremos de falar – foi a recente edição, a 3ª (Junho de 2017), bastante renovada, do livro de Júlio Conrado, As Pessoas de Minha Casa. Aí não é apenas a Carcavelos da sua infância e juventude, nos anos 40, mas também a Cascais dos anos 60 e, até, da actualidade, que, com cruas e bem acertadas frechas, o autor se deleita em escalpelizar.
            A imprensa e os livros – mananciais de uma história quotidiana, onde homens e mulheres concretos se movimentam. A descobrir!
                                                        José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal [Cascais], nº 221, 14-02-2018, p. 6.

 

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