sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Depois, um dia, lembras-te!

             Meu filho ofereceu-me o livro As velas ardem até ao fim, do húngaro Sándor Márai. A 28ª edição, de Janeiro de 2017; a 1ª edição portuguesa, de Outubro de 2001. Um êxito, portanto.
            A história de dois grandes amigos desde a infância, um da alta burguesia, com seu palácio, domínios, criados; o outro, emigrante, filho de gente da Galiza com dificuldades. A diferença de estatuto económico e social não se faz sentir, porque ambos seguem a carreira militar e o gosto pela música preenche, no de origem galega, clivagens eventuais. Um dia, este demanda os trópicos, sem mais nem menos (pensa-se), e o general mantém a recordação, que vem a lume, em longa conversa, que faz a riqueza do entrecho, aos 73 anos, num jantar de reencontro. Desvenda-se a traição à amizade pura; Konrád veio, ouviu, calou e sumiu…
            Agrada-nos a evocação do primeiro quartel do século XX. Os ideais da Revolução Russa rapidamente chegam aos trópicos, onde Konrád estava, mas os cânones da alta sociedade da Europa Central ainda se mantinham bem vivos.
            Sublinhei esta passagem: «Grandes acontecimentos, passados dez ou vinte anos, descobre-se que não alteraram nada dentro de ti. Depois um dia lembras-te duma caçada, duma passagem dum livro ou deste quarto» (p. 72).
            E estoutra: «Agora que estou velho, penso muito na minha infância. Dizem que esse processo é natural. Uma pessoa recorda-se do início mais intensa e precisamente quando o fim se aproxima» (p. 79).
            Assim é, de facto. E deixei-me também eu levar… E, não sei porquê, talvez por estar a ler num ambiente com aquecimento central, lembrei-me do fogão a petróleo, de um cobre reluzente (minha mãe fazia questão em tê-lo bem areado), que eu próprio, catraio, manuseava para fazer o almoço. Deitava o álcool desnaturado (era azul) no pequeno reservatório, puxava-lhe fogo com um fósforo, deixava aquecer a cabeça e, quando já estava incandescente, dava à bomba para o petróleo subir com pressão, por um buraquinho milimétrico, previamente desentupido com um apetrecho de dois araminhos. O espalhador encarregava-se de alargar a chama e o som forte e monótono do seu trabalhar consolava-nos, na esperança de um caldo verde a condizer… Do que eu me havia de lembrar!...

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 725, 15-02-2018, p. 11.

3 comentários:

  1. O livro é um dos meus preferidos e o autor também.
    A máquina a petróleo faz parte da minha herança e está na sala em local de honra a decorar, bem como a Kodak com que eram tirados os retratos de família e o trombone de varas do meu pai! São objectos familiares do passado que me acompanham no presente!

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  2. Amelia da Silva
    Também tínhamos um; ali fazíamos a comida toda!

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