quarta-feira, 11 de julho de 2018

Não, não são feras, são humanos! – Uma nota sobre «Cristo Recrucificado»

            A peça envolve-nos logo de início, com todos os actores em cena, na cativante dança do Zorba. Compreende-se a opção: Nikos Kazantzaki (1883-1957) também escreveu «Alexis Zorbas» (1946), esse mesmo, «Zorba, o Grego», que, no filme de Michael Cacoyannis, Anthony Quinn, ao lado de Irene Papas, superiormente imortalizou. «Cristo Recrucificado» viria logo a seguir, em 1948.
            Outros falarão melhor das dificuldades da encenação, bem superadas, como sempre, por Carlos Avilez, com o imprescindível apoio habitual de Fernando Alvarez, na concretização cenográfica e nos figurinos, e da coreógrafa Natasha Tchitcherova. Note-se que se trata da «Prova de Aptidão Profissional» dos finalistas da Escola Profissional de Teatro de Cascais, que júri de reconhecido mérito, por isso, devidamente apreciará. É, na verdade, a mais importante prova dos estudantes, que, ao longo do curso, tiveram outras oportunidades de pisar o palco e mostrar quanto valiam. Neste caso, porém, é a prova-mãe, ao lado dos actores da companhia e – honra maior! – contracenando também com Ruy de Carvalho, visivelmente satisfeito também com esta sempre enriquecedora experiência, como teve ocasião de me dizer.
            Pôr em palco quase uma centena de participantes não constitui tarefa fácil e só a maestria dos elementos do TEC é que logra obter eficazmente esse milagre.
            O espectáculo estará em cena até dia 29.

Um conflito actual
            Confidenciava-me Carlos Avilez:
            ‒ Parece escrita agora!
            E tem razão.
            Ninguém diria, à primeira vista, que esta recusa, por parte de uma aldeia, em receber refugiados se prende com o drama vivido pelos Gregos quando, por força do tratado de Lausanne (1923), se viram obrigados a exilar-se e a regressarem a Atenas e a Tessalonica, expulsos do território agora reconhecidamente turco, com a República da Turquia a alcandorar-se a sucessora legítimo do extinto Império Otomano. Nikos Kazantzaki sentiu-o bem, porque, em missão no Cáucaso, já em 1919 tivera de lutar com todo o empenho contra o extermínio das populações gregas. Aliás, mais perto da publicação do livro, em 1946, acabaria por também rebentar na Grécia a guerra civil, em que, naturalmente, a luta pela posse das terras foi sangrenta e crucial.
            Preparava o sacerdote as cerimónias pascais e ia escolhendo entre o seu ‘rebanho’ quem faria de Judas, de João, de Cristo… à semelhança dos autos medievais. Com a diferença de que, a partir do momento em que lhes é atribuído o papel, os personagens começam a agir como se realmente o tivessem incarnado. A preparação é, todavia, interrompida pela chegada de outro «rebanho», que foge ao extermínio turco e pede asilo, até porque cristãos são também. O conflito, os jogos de interesses, a religião de mistura com o dinheiro envolvem-se, pois, sem que haja mediador aceite, sem que a crueldade deixe de falar mais alto do que a clemência ou a hospitalidade impossível.
            Perante tamanhos desmandos, há quem, à boca de cena, como que num desabafo, acuse:
            ‒ Feras!
            Ao que outrem replica de imediato:
            ‒ Não, não são feras, são humanos!
            Essa ferocidade vive, atroz, ali à nossa frente. Dói-nos. Punge-nos, de facto.
            Esse, de resto, o papel do Teatro: mostrar-nos de perto aquilo que, por vezes, apenas imaginamos e com tintas suaves, porque se passa longe e, se calhar, imagina-se, não serão feras assim!... São. Mais do que imaginamos.
            Arrepia-nos o punhal friamente empunhado que corta, sem dó nem piedade, os órgãos genitais do inimigo. Arrepia. Contudo, vão nesse mesmo sentido os relatos diários de centenas e milhares de refugiados, voz embargada, porque foi a mãe violentada, o pai assassinado, o filho menor, a mulher amada…
            O auto termina como tem de terminar: há o caminho para o Calvário, os açoites, a coroa de espinhos, a Verónica que limpa o rosto de Cristo, o pendurar na cruz e a punhalada mortal pelas costas…
            Incomoda-nos.
            Os actores mostraram-nos cruamente como, afinal, também neste momento em que eu escrevo e tu me lês, há humanos que nem o nome de feras merecem, porque estas – e são milhentos os exemplos! – sabem comportar-se em comunidade, têm instintivamente valores que defendem. E, no género humano, os valores humanos… perderam-se!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, 11-07-2018:
 
Fotos de ensaio, da autoria de Ricardo Rodrigues, retiradas, com a devida vénia, da página do TEC no Facebook.
Tudo está previsto e vai estar nos conformes!
 
E louvado seja o Senhor!
 
Instantâneo de uma ternura contida
 
A crueldade em acção

1 comentário:

  1. Pepita Tristão
    Quarta-feira, 11 de Julho de 2018 20:43

    Gostei mesmo muito. É sentido!

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