domingo, 27 de novembro de 2011

Com o Cachimbo de Meu Pai...

... de Carlos Carranca [1]

Fumo, cachimbo, pai… Memória, afecto, serenidade.
Fumei cachimbo; meu pai fumou cachimbo. Meu avô paterno fumava cachimbo e não posso imaginá-lo sem ser de cachimbo na boca – sempre!
Um fumo diferente, bem cheiroso… Um fumo que nos inebria e seduz; provoca a imaginação; evola-se, como incenso em purificante altar de deuses…
Depois, o ritual: acendia-se friccionando o fuzil na pederneira (o sílex pirómaco) que queimava a isca, semente da isqueira. Talvez se não saiba que isqueiro era precisamente a caixa onde se guardavam as iscas… Assoprava-se para ficar em brasa e, paulatinamente, pacientemente, o lume ia pegando até cobrir a superfície toda, atiçado pelo sorvo a espaços… De seguida, era aspirar de quando em vez, saboreando – que a ciência residia em não deixar apagar! E sempre a carícia quente na mão, do fornilho arredondadamente suave, lustroso, bom…
Mais tarde, nem sempre todas as noutes, ou pela manhã, a operação da limpeza, em ritual também: sopra pela boquilha, raspa bem o fundilho, seca tudo muito bem…

Pode não apreciar-se o conteúdo do livro, os versos, alinhados ou não, de Com o Cachimbo de Meu Pai; contudo, mesmo que só nos quedássemos pela capa, tínhamos ali a Poesia toda, entendendo por Poesia aquela forma de muito dizer com palavras poucas, de muito sugerir com imagens mínimas, de longo historiar na fugacidade do momento.
Castanha a cor da capa, para fazer sobressair brancuras; artístico alongamento do banal código de barras, a sublinhar três eloquentes depoimentos, na quarta capa.
O Poeta, ali, em corpo inteiro!

Tive o privilégio de arguir a tese de doutoramento de Carlos Carranca – e este é, creio, o seu primeiro livro de Doutor por extenso. Na tese [2] pôs em paralelo Torga e Unamuno, dois viscerais patriotas, entendendo-se por patriotismo o amor pelo vernáculo, pelo típico, pelo que entranhadamente é nosso e nos distingue.
Ecoa essa temática na quadra puxada para a badana: a Pátria é tudo o que nos envolve, nos impregna, o bibe e o cachimbo e – claro! – todas as fases intermédias dum nascer rodeado. Os presentes e os ausentes. Um património – nosso! «Pátria», de pai, de antepassado, de pessoas que vieram antes de nós, que estiveram junto a nós, que partiram antes de nós – mas aqui estão, bem presentes! «Menino de bibe», «cachimbo de meu pai»…

Gosto das pinceladas de Rui Vasquez. Enigmáticas. Olhos que perscrutam, a desvendar negruras. Pensativas, serenas, confiantes…
Meditação. Paragem – que o gesto de semear palavra requer longos silêncios também. Cantochão em catedral de preces sussurradas.

Dividiu o Poeta em três partes o seu livro, identificadas por uma epígrafe e por esses desenhos de Rui Vasquez:
– Perspicaz olhar na página 8, precedido por uma passagem da 1ª (e não da 2ª) Carta de S. Paulo aos Coríntios (3, 18), que reza assim (permita-se-me que dê uma versão diferente da transcrita): «Ninguém se engane a si mesmo; se algum de vós se julga sábio segundo este mundo, faça-se louco para se tornar sábio». O versículo seguinte, não transcrito, explicita o pensamento do Apóstolo: «Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus, pois está escrito ‘Eu apanharei os sábios na sua própria astúcia’».
– Olhar atento na pág. 24.
– Expectante na pág. 42, antecedido este por uma afirmação de Raul Brandão acerca do Homem e da sua arte histriónica.

Perguntar-se-á: mais um livro de poemas… para quê, num país de poetas? Aliás, eu acho que o são todos os países, pois escrever palavras belas e poucas constitui apanágio intrínseco do Homem, ainda que, em ritual (ou não) de acasalamento, gestos e sons de todos os animais sejam versos pela aragem derramados…
Tem este 36 poemas, quase todos de uma página só. E que pode dizer-se numa página, três-quatro linhas ao fundo dela, como se houvesse medo de a preencher toda, de sujar imaculadas brancuras?...

Fez tese Carlos Carranca sobre Torga e Unamuno, como disse. Leu e releu esses autores; longamente meditou sobre o que eles disseram. Era suposto, pois, que apresentador digno também lesse e relesse, meditasse, perorasse, contasse tudo de fio a pavio… Apesar dos longos anos debruçado sobre os escritos de um e de outro, Carlos Carranca não esgotou, no entanto, o pensamento de Torga e de Unamuno; antes pelo contrário: abriu caminhos, despertou apetites, numa sedução.
Assim, o apresentador: não pode esgotar o tema; deve, sim, torná-lo, se possível, ainda mais aliciante.
Carlos Carranca poeta consubstancia em si o pensador, o cantor e… o político! Permita-se-me, pois, que a esses três aspectos ora me cinja.
Pensador
Captando ecos de outras andanças, inclusive o da tese de doutoramento, onde o tema da religiosidade sempre esteve patente, assim como na sua investigação sobre Torga como ser religioso,[3] agarro no poema da pág. 30: «Nada ser de Deus».
Enigmático. Deveras enigmático. Parece confessar-se ateu, porque Deus é – para ele, poeta – o nada, afinal, com um rosto inexistente, mas que, em versos («palavras arrumadas»), teimam em atribuir-Lhe. É, pois, Deus uma criação poética? Todavia… mesmo usando como escada os versos – «palavras gastas e sempre renovadas» – o Poeta apenas consegue subir ao nada. Mágoa? Apenas verificação – resultado de uma experiência laboratorial muitas vezes repetida? «Por me saber ateu» – escreve. É Deus ou o Poeta o sujeito desta frase? Claro que tem de ser o Poeta que como tal se reconhece… Contudo, reconhecer-se-á?... Estão gastas as palavras, sim; não as proclama, no entanto, «sempre renovadas»? Teimosia é ou… a conclusão, alfim, de uma reflexão quotidiana, de palavras sempre renovadas? Será Deus um «nada»? Ou, para o Poeta, é poesia uma religião?

Por estes campos onde Deus não mora
há cruzes e santos e alminhas
(pág. 34)

Sete versos e… tanto por pensar:

Nada ser de Deus senão dos versos
Que em palavras arrumadas
lhe vão dando o rosto que não tem.
Por me saber ateu
dos versos subo ao nada
a caminhar palavras gastas
e sempre renovadas.
(pág. 30)

Cantor
Cantor é Carlos Carranca. Para ele, as palavras têm melodia, reconhece-as «pelo cheiro»; «ao fim do dia», porém, «suadas e humanas»… elas são «poemas por detrás da vida»! (pág. 31). Alguns dos seus textos são, pois, claramente para cantar, ao ritmo dolente de rufares pelas quebradas…
«Que espero eu da poesia?» – pergunta, a dado passo. Sopa fria, sapato roto, pé descalço… Tudo isso! Mas, acima de tudo, «dentro de mim melodia»! (pág. 13).
E deixamo-nos embalar em jeito de suave balada:

porque não sei cavalgar
dou-te minhas esporas de prata


porque não sei prantear
dou-te os meus olhos de vento
(pág. 15)

às vezes sobra-me tempo
onde o tempo é já a sobra
doutro tempo que passou
(pág. 17)

culminando na balada para o nosso Luiz Goes (p. 46):

Andam p’la terra os poetas
dizem que são de ficar
dizem que são de ficar
são como os filhos das ervas.

Andam p’la terra os poetas
Nas ondas altas do mar


Ecos trovadorescos também.

Político
Finalmente, o político, arauto da liberdade, como se exige que o sejam sempre os poetas.
Canta-se a fraternidade – olá, Xanana, cristo-o-torto, cristo-o-velho, cristo-o-louco, cristo-o-belo! (pág. 47).
Verberam-se guerras estranhas:

No hospital de Prizren
lágrimas devoram o rosto
das vidas bombardeadas.
(pág. 49)

Deixo de lado Coimbra, a Coimbra das memórias – olá, Couceiro! Olá, João Alvarez! Olá, Álvaro Aroso… – que também por aqui há (houve!) política e bem se aprendeu a lição de Torga, Miguel como Unamuno, Miguel como Cervantes. E é pungente o final. Bem, o final final lembra-me José Gomes Ferreira e a sua atenção às coisas mínimas da vida;[4] neste caso, o Poeta vê que a seu lado agora se assenta um cego (pág. 59) e quase lhe apeteceria começar a dissertar sobre a cegueira.[5] Não disserta, porque o cego lhe lembra Homero, o mítico poeta épico que dizem ter sido cego, e descobre um Homero que ri. Riso mordaz deve ser, porque agora já não há lugar para os épicos:

Agora que não temos um país
e onde
pelo sonho que fomos já não vamos (p. 57).

Missão cumprida, Poeta!
Do cachimbo de teu pai se evolavam fumaças olorosas, brincando na brisa suave… Agora, as fumaças fedem; a brisa virou tornado; e sobre a mão que segura o cachimbo impende espada de Dâmocles, em permanente ameaça.
Se já pelo sonho querem que não vamos; se o comboio já não passa tragado pelo progresso; se o recreio da escola virou corredor estreito… teimosia maior há-de ser a nossa, Poeta! Renegaremos Régio, solenemente, e vamos proclamar: «Ai sim? Então… eu vou por aí!».

NOTAS
[1] Edição de Talenticious, Figueira da Foz, 2011.
[2] Dissertação em Línguas e Literaturas Modernas, especialidade de Língua, Cultura e Literatura Portuguesas, intitulada O Casticismo em Torga e Unamuno, foi defendida, a 1 de Junho de 2010, na Universidade Autónoma de Lisboa.
[3] Torga – o Bicho Religioso, Universitária Editora, Lisboa, 2000 (2ª edição).
[4] Cf. José Gomes Ferreira, Poesia – III, Círculo de Leitores, Lisboa, s/ d.
[5] Cf. José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira, Editorial Caminho, Lisboa, 2001.

[Apresentação feita a 19 de Novembro de 2011, na sede do Clube Desportivo da Costa do Estoril, Alapraia.]

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