terça-feira, 17 de julho de 2012

O nosso quotidiano mariposeio

            Mariposear: andar de um lado para o outro, pegar numa coisa agora, deixá-la a meio, começar outra e, de seguida, atirar-se a mais uma sem deixar acabada a anterior. Tal como parece ser a mariposa, que vai daqui para ali, depois volta, volteia, poisa aqui, poisa acolá, está quieta escassos segundos….
            Meu pai preferia um termo mais corriqueiro, menos… poético: besoirar! Besoirar quererá significar vulgarmente «incomodar com barulho insistente», qual besouro que vai e vem e nos acicata os ouvidos. Tenho-o, porém, num outro significado, porventura próprio do falar algarvio: muitas vezes meu pai o usava, mormente quando, por exemplo, nos preparávamos para ir para a mesa; minha mãe ou minha avó ficavam a «besoirar»: tinham sempre mais uma coisa a fazer, faltava isto, faltava aquilo e parecia que nunca mais se despachavam!...
            Lembra-me a palavra duas outras situações.
Uma, a dos que já estamos avançados nos anos e que, amiúde, vamos arrumar a chave e vemos um sapato fora do lugar e o livro desarrumado e toca alguém à porta e… ao fim do dia, perguntamos: «Mas onde é que eu pus a chave?»…
A outra, a história do chanceler D’Aguesseau, contada por Mário Gonçalves Viana (A Arte de Estudar, 1943, p. 151): havia sempre um intervalo, mais ou menos longo, entre o momento em que o chamavam para a mesa e aquele em que a refeição começava; decorrido algum tempo, o chanceler apresentou à família, estupefacta, o livro que escrevera unicamente durante esses ligeiros quartos-de-hora em que o resto do pessoal… besoirava!
            E se a primeira situação acaba por constituir um grito de alerta e nos obrigar, ao final do dia, a rigoroso exame de consciência acerca do nosso estado de espírito habitual e da capacidade de dominarmos os passos do nosso existir quotidiano, revela-nos a segunda um outro ‘drama’ que consubstanciamos na frase «Não tenho tempo para nada!» e a que Michel Quoist retorquiria prontamente: «Tens muito tempo à tua disposição, mas passas o tempo a perder o teu tempo». (Construir, Livraria Morais Editora, Lisboa, 1965, p. 123).
     
Publicado no quinzenário Renascimento [Mangualde], nº 597, 15-07-2012, p. 15.

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