Recostado
na espreguiçadeira da piscina, as ondas pequenas a espreguiçarem-se, também
elas, na praia alia em baixo, vejo quatro cargueiros parados na linha do horizonte.
Situação corrente. Já ali estão há três dias. O técnico dirá: esperam vaga no
porto de Lisboa; o Poeta, porém, é capaz de os pôr a ganhar fôlego para novas
viagens, impregná-los de tédio pela bem escusada espera ou descobrir-lhes
inveja da agilidade branca dos barquitos à vela que lhes fazem negaças perto,
manobrados por aprendizes…
Confesso-me
incapaz de escrever versos e tenho dificuldade em classificar de ‘poema’ um texto
só porque formalmente se apresenta estruturado em versos, designadamente se
desprovido de rima. Aceito, todavia, essa opção – pois, amiúde, dessa forma
sintética a mensagem resulta mais eficaz que prolixo e mui erudito tratado.
Tenho
presente o livro Cintilações, de Ana
T. Freitas, edição de Apenas Livros (Abril de 2015, ISBN: 978-989-618-505-3,
116 páginas). No texto com se apresenta, fala dos livros que leu na infância e
juventude; evoca os tempos da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian (uma das iniciativas
de Branquinho da Fonseca que nunca será de mais enaltecer). E suspeitamos que seguiu
a carreira docente.
A
partir de 2009, mercê do convívio com Jorge Castro – também ele acordado para estas
lides poéticas passada a meia-idade e autor do prefácio do livro que se
comentará a seguir –, reencontrou esse modo de se expressar. Tal como Jorge
Castro fazia em Cascais as Noites com
Poemas, iniciou Ana Freitas, com o maior êxito, a série mensal Um Poema na Vila, em Coruche, tertúlia
donde saíram já os livros A Minha Rua
e O Montado – Um Lugar Poético, cujas
edições coordenou.
Significativa,
a capa de Cintilações: a foto da
estação ferroviária do Pinhão, da sempre magnífica Linha do Douro, em pleno
Outono, quando essas encostas se vestem de dourados e castanhos: «… neste comboio,
serpenteando montes, parti um dia para o mundo que se abria…». E pelo livro é,
de facto, todo um mundo que se nos abre, frequentemente a verberá-lo, porque se
desejaria bem melhor:
«assim
vão as nossas vidas
flutuando
em mares de números
poluídos
suportados
pela palavra».
Essa,
a observação; e vem depois o voto:
«a
vida só pode ser vivida de braço dado
com
a grandeza dos números e a humanidade das letras» (p. 43).
Palavras
soltas, por vezes, como salpicos de água refrescantes: «vozes sons entoações expressões»
(p. 60) – e imagina-se a ternura mágica da mãe a embalar o filhote…. Salpicos
mesmo!
A
noite de S. João no Porto, natural ensejo para saborosas quadras populares; mas
lá vem o final atento, como nas fábulas de Esopo, numa desculpa ao santinho por
não ser viável a esmola e no lamento:
«A
crise serve para tudo
Sem
um futuro em que invistas
Injustiça
é mais injusta
Mas,
amigo, não desistas!» (p. 41).
Os
votos, aliás, sucedem-se, diante de um panorama que voluntariamente se oculta
porque se auspicia bem diferente: «eu queria a minha escola no agora poético /
que cada um corresse para ela na certeza do prazer» (p. 38).
Agrupados
em duas partes («… aqui», «e além…»), estão datados os poemas: o mais antigo de
14.03.09 e de 24.04.2014, o mais recente. Trazem, por vezes, a indicação
expressa do que os motivou: as ânsias da intervenção oftalmológica, o «1º mês
de corte de salários na função pública», a D. Alice, de 81 anos, louletana que
encontrou no Hospital de Santa Maria e que sabia falar em rima…
Só
mui raramente há pontuação. As palavras (des)alinhadas obrigam a pausas
inesperadas – que fazem pensar. E essa é, afinal, a nobre missão do Poeta!
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal, edição de 28-07-2015:
Pois a mim ficou-me a sensação de que estão bem um para o outro: a autora da poética e o leitor que (se) investiga... A referência é bem merecida, pelo trabalho burilado ou de bilros que a Ana vai desenvolvendo por Coruche e por onde vai calhando. E, a mim, tão-só me dá para me congratular pela existência de tão bons espíritos, que tornam a nossa existência tão mais doce, nestes tempos (que alguns querem tornar) tão áridos de Vida.
ResponderEliminarDessa Vida onde mora a Humanidade, solidária, atenta, próxima.
Gostei muito, caro Professor José d'Encarnação, como sempre - já vai sendo um lugar-comum, apesar de ser, afinal, tão incomum, diga-se. Estou, entretanto, a ler com enlevo os seus Retalhos e parece-me estar a ouvir daqui o martelar, como carícia, a pedra onde lavramos o presente para que o futuro nos lembre.
É como digo e repito: estão bem um para o outro, estes seres humanos que tenho a sorte de conhecer.
Muito grata sou a ambos. É, de facto, uma sorte conhecer--vos.
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