terça-feira, 28 de julho de 2015

Do Pinhão, um dia, parti…

           Que fazem os poetas? Adoptam, com maior frequência, a atitude ideal: tomam consciência da realidade, assumem-na e partem dela para uma reflexão.
            Recostado na espreguiçadeira da piscina, as ondas pequenas a espreguiçarem-se, também elas, na praia alia em baixo, vejo quatro cargueiros parados na linha do horizonte. Situação corrente. Já ali estão há três dias. O técnico dirá: esperam vaga no porto de Lisboa; o Poeta, porém, é capaz de os pôr a ganhar fôlego para novas viagens, impregná-los de tédio pela bem escusada espera ou descobrir-lhes inveja da agilidade branca dos barquitos à vela que lhes fazem negaças perto, manobrados por aprendizes…
            Confesso-me incapaz de escrever versos e tenho dificuldade em classificar de ‘poema’ um texto só porque formalmente se apresenta estruturado em versos, designadamente se desprovido de rima. Aceito, todavia, essa opção – pois, amiúde, dessa forma sintética a mensagem resulta mais eficaz que prolixo e mui erudito tratado.
            Tenho presente o livro Cintilações, de Ana T. Freitas, edição de Apenas Livros (Abril de 2015, ISBN: 978-989-618-505-3, 116 páginas). No texto com se apresenta, fala dos livros que leu na infância e juventude; evoca os tempos da Biblioteca Itinerante da Gulbenkian (uma das iniciativas de Branquinho da Fonseca que nunca será de mais enaltecer). E suspeitamos que seguiu a carreira docente.
            A partir de 2009, mercê do convívio com Jorge Castro – também ele acordado para estas lides poéticas passada a meia-idade e autor do prefácio do livro que se comentará a seguir –, reencontrou esse modo de se expressar. Tal como Jorge Castro fazia em Cascais as Noites com Poemas, iniciou Ana Freitas, com o maior êxito, a série mensal Um Poema na Vila, em Coruche, tertúlia donde saíram já os livros A Minha Rua e O Montado – Um Lugar Poético, cujas edições coordenou.
            Significativa, a capa de Cintilações: a foto da estação ferroviária do Pinhão, da sempre magnífica Linha do Douro, em pleno Outono, quando essas encostas se vestem de dourados e castanhos: «… neste comboio, serpenteando montes, parti um dia para o mundo que se abria…». E pelo livro é, de facto, todo um mundo que se nos abre, frequentemente a verberá-lo, porque se desejaria bem melhor:
 
                         «assim vão as nossas vidas
                         flutuando em mares de números
                         poluídos
                         suportados pela palavra».

            Essa, a observação; e vem depois o voto:

            «a vida só pode ser vivida de braço dado
            com a grandeza dos números e a humanidade das letras» (p. 43).

            Palavras soltas, por vezes, como salpicos de água refrescantes: «vozes sons entoações expressões» (p. 60) – e imagina-se a ternura mágica da mãe a embalar o filhote…. Salpicos mesmo!
            A noite de S. João no Porto, natural ensejo para saborosas quadras populares; mas lá vem o final atento, como nas fábulas de Esopo, numa desculpa ao santinho por não ser viável a esmola e no lamento:

                               «A crise serve para tudo
                               Sem um futuro em que invistas
                               Injustiça é mais injusta
                               Mas, amigo, não desistas!»  (p. 41).

            Os votos, aliás, sucedem-se, diante de um panorama que voluntariamente se oculta porque se auspicia bem diferente: «eu queria a minha escola no agora poético / que cada um corresse para ela na certeza do prazer» (p. 38).
            Agrupados em duas partes («… aqui», «e além…»), estão datados os poemas: o mais antigo de 14.03.09 e de 24.04.2014, o mais recente. Trazem, por vezes, a indicação expressa do que os motivou: as ânsias da intervenção oftalmológica, o «1º mês de corte de salários na função pública», a D. Alice, de 81 anos, louletana que encontrou no Hospital de Santa Maria e que sabia falar em rima…
            Só mui raramente há pontuação. As palavras (des)alinhadas obrigam a pausas inesperadas – que fazem pensar. E essa é, afinal, a nobre missão do Poeta!
                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 28-07-2015:

2 comentários:

  1. Pois a mim ficou-me a sensação de que estão bem um para o outro: a autora da poética e o leitor que (se) investiga... A referência é bem merecida, pelo trabalho burilado ou de bilros que a Ana vai desenvolvendo por Coruche e por onde vai calhando. E, a mim, tão-só me dá para me congratular pela existência de tão bons espíritos, que tornam a nossa existência tão mais doce, nestes tempos (que alguns querem tornar) tão áridos de Vida.
    Dessa Vida onde mora a Humanidade, solidária, atenta, próxima.
    Gostei muito, caro Professor José d'Encarnação, como sempre - já vai sendo um lugar-comum, apesar de ser, afinal, tão incomum, diga-se. Estou, entretanto, a ler com enlevo os seus Retalhos e parece-me estar a ouvir daqui o martelar, como carícia, a pedra onde lavramos o presente para que o futuro nos lembre.
    É como digo e repito: estão bem um para o outro, estes seres humanos que tenho a sorte de conhecer.

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  2. Muito grata sou a ambos. É, de facto, uma sorte conhecer--vos.

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