quarta-feira, 1 de julho de 2015

O colhedor de espinhos

            «Deixei os reis cobertos com os seus mantos; deixei de ir em seus cortejos. Converti-me, em Alcabideche, em colhedor de espinhos, com uma foice guarnecida e afiada. E, se me perguntam “Gostas?”, respondo-lhes: "O amor à liberdade faz parte do carácter nobre!"».
            Estava muito longe de começar assim a crónica desta quinzena. Motivou-me o inesperado falecimento, no passado dia 23, em Dalvares, do Doutor João Luís Vaz, meu ex-aluno de Coimbra, amigo e companheiro das lides pela Epigrafia romana, pela Arqueologia e História Antiga, desde há quase 40 anos… Uma vida!
            Claro, precisava de a dedicar à sua memória, não apenas porque ainda não estamos bem conscientes de que, de facto, partiu do nosso convívio e por ele elevamos uma prece, mas, de modo especial, por uma das suas mais recentes iniciativas em prol das ciências a que se entregava como investigador se ter concretizado em Mangualde, com o mais amplo apoio local: da Câmara, da ACAB – Associação Cultural de Azurara da Beira e de outras entidades. Refiro-me à VIII Mesa-redonda Internacional sobre a «Lusitânia Romana – Entre Romanos e Bárbaros», que, com enorme brio, aqui organizou em Maio de 2013 e cuja publicação das actas tinha entre mãos.
João L. da Inês Vaz, na sessão de abertura, a 10 de Maio de 2013,
da VIII Mesa-redonda Internacional sobre a Lusitânia Romana
            O texto transcrito está num poema de Ibne Mucana, poeta árabe do século XI; natural de Alcabideche, terra aonde se ‘refugiou’ após uma vida passada no bulício das cortes dos reinos de taifas pelo que é hoje a Andaluzia. Viveu também João Vaz uma vida intensa – de estudo, de investigação, de intervenção política… Contudo, se a aposentação o não libertou do gosto pela História Antiga e pela intransigente defesa do Património Cultural, certo é que na agricultura se refugiava e foi precisamente em meio de um labor agrícola que a morte o veio surpreender. Como Ibne Mucana.
            Ocorrem-me, naturalmente, todas aquelas frases mais ou menos feitas quando há um desenlace assim, tão repentino, tão brutal, tão… sem jeito! Escuso-me de as escrever. Recordam-se, porém, as lutas travadas por um ensino melhor, por uma sociedade mais humana, pelo reconhecimento e revitalização das memórias locais, fonte de um enraizamento populacional por que insistentemente se pugna. Fica-nos o exemplo do lutador com «amor à liberdade». Colheu espinhos onde, quiçá, apenas semeara ilusões; mas colheu frutos também. E sabemos que continuará a nosso lado!

                                                                                              José d’Encarnação    

Publicado no quinzenário Renascimento (Mangualde), nº 665, 01-07-2015, p. 12.

 

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