sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

As ceiras da Beselga

Excelente pretexto para uma exposição

             O Dr. Alberto Correia, que se formou em História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, não quis dedicar-se exclusivamente à sua vocação de docente. Desde muito cedo se tornou fundamentalmente um homem de cultura onde passou a viver, em Viseu, e a Etnografia foi, sem dúvida, um dos campos a que mais se dedicou. Daí que tenha sido também convidado para dirigir museus, para ser o comissário de exposições…
            Nunca descurou, porém, a escrita, que poderia, de certo modo, chamar-se «de pura intervenção cultural». Deliciam-nos as suas crónicas, sempre colhendo inspiração nos costumes das gentes e seu dia-a-dia. Publicadas depois, em livros, de assinalável êxito, permanecem como retratos de um viver prenhe de tradição. Recordo, a título de exemplo, Arcas da Memória (Imagens&Letras, Leiria, 2006), uma selecção dessas «melhores crónicas», 60 ao todo, vindas a lume no Jornal O Centro, de Viseu, e de que tive oportunidade de fazer recensão no Jornal da Beira de 13/09/2007.
            Desta feita, Alberto Correia virou a sua atenção para uma actividade que corria (ou corre) o risco de desaparecer: a arte de fazer ceiras de junça. Ceiras e outros artefactos de uso quotidiano em Beselga, Penedono.
            E para que a tradição não morresse, a ele se juntou o pároco de Santa Cruz da Beselga, com o objectivo de, numa exposição, se mostrar o Memorial da Devoção Ceireira. Cumpre, pois, não apenas incitar a uma visita, mas também importa, desde já, traçar uma panorâmica do que é o excelente Roteiro dessa exposição, magnificamente ilustrado, «a concretização de um sonho que há muitos anos vínhamos acalentando!...», confessa o Padre Carlos Manuel Rodrigues de Carvalho.
            Permita-se-me aqui um parêntesis para dar conta de iniciativa análoga, um livro que tive o privilégio de prefaciar e apresentar, cujo objectivo era precisamente o mesmo, em relação a uma fibra vegetal que, se não é a mesma, é deveras semelhante: o bracejo, stipa gigantea, de seu nome científico. O caso passa-se em Pombal, mais propriamente na chamada Ilha dos Cestos, onde uma cooperativa de mulheres pugna para que a «arte em bracejo» não morra. Chama-se o livro «A Arte em Bracejo na Ilha dos Cestos», é da autoria de Cidália Botas e foi editado, em 2004, pela Câmara Municipal de Pombal. Lá, como aqui, idêntico desejo: que não se perca a tradição!
            Numa escrita fluente e límpida, o Roteiro começa por uma explicação acerca do conceito de «museu»; demora-se sobre as características do território e da sua população; faz a história da «odisseia ceireira» e mostra depois, com a ficha de cada uma das peças da colecção, o que é, no fundo, uma espécie de pequeno, mas valioso, museu de arte sacra, que ora se encontra patente no primeiro piso da Casa da Paz. Aliás, explica o Padre Carlos que era justamente essa uma das ideias que presidiu à compra, pela paróquia, no Adro, da «casa ora designada Casa da Paz». Entre outras serventias, «reservou-se o justo espaço que um dia poderia constituir-se como “núcleo museológico” que preservasse as suas naturais e seculares memórias».
            E, assim, acabam por constituir espólio do museu objectos ligados ao culto, à liturgia e à religiosidade popular, sendo também intenção representar ali «o espaço habitado, a rua, o caminho, o carreiro, a ponte, a água, a fonte e o moinho, os cruzeiros, um nicho, a capela» - que tudo isso, escreve o Padre Carlos Carvalho, lembra «o homem sempre em viagem, viagem que só acaba no abraço de Deus».
            Vêm depois os vários núcleos em que a exposição se desenvolve, objectos que «têm mais um significado de afeição do que estatuto de riqueza». Notáveis, porém, as alfaias litúrgicas antigas: bonitas sacras, um missal de 1867, píxides, um vaso de comunhão de estanho (séculos XVII-XVIII), uma cruz processional do século XVIII, uma imagem de Nossa Senhora da Encarnação de pedra de Ançã (séculos XV-XVI); finalmente, a devoção e festa de Nosso Senhor dos Passos, com a reprodução de várias tábuas de milagres, bem significativas pela sua ingenuidade…
            Enfim, preciosa é a exposição e mui precioso o catálogo que dela dá conta. Edição, deste ano, da Paróquia de Santa Cruz de Beselga, com o patrocínio do Município de Penedono e da Junta de Freguesia de Beselga. Houve, além disso, o cuidado de se editar um desdobrável para acompanhar a exposição.
            Parabéns a todos os que intervieram na edição, saudando-se, de modo especial, o incansável dinamismo do Dr. Alberto Correia.
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Voz de Lamego, 19-12-2017, p. 18.

 

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