1. Testemunho
«Testemunho»,
a primeira palavra que me ocorre, depois de ler este livrinho de poemas de
Carlos Carranca.
Testemunho,
porque demonstra não implicar a doença um abandono da vida. Carlos continuou a
fazer projectos, a escrever, enriquecido por esta experiência que não deixa de
ser ímpar quando nos toca a nós.
2. Afirmação de si como pessoa
Afirmação
de si como pessoa: a segunda ideia que de imediato me sobreveio. Afirmação
patente na apresentação do título, escrito pelo seu próprio punho.
Sou,
como se sabe, epigrafista. Essa, a minha especialidade académica. Estou,
portanto, habituado a lidar diariamente com a escrita, não só no conteúdo, mas,
de modo especial, na forma. Não é que haja enveredado pela grafologia; reconheço,
porém, que – ainda que inconscientemente – a maneira de escrever que adoptámos
foi paulatinamente moldada pela nossa personalidade, pela imagem que desejamos transmitir.
Pode
Carlos Carranca nem ter pensado nisso. Ele o dirá, se assim o entender. E nem
uma palavra troquei com ele a este propósito. O certo é que ter optado por ser a sua escrita a figurar na capa, o
branco sobre um fundo verde-esperança e, sobretudo, no sentido vertical
ascendente, com aquela acentuada haste do p
e a evidência do acento agudo, com o nome – esse, sim, em letra de imprensa –
mui discretamente acachapado ao fundo, tudo isso constitui reflexo evidente da
sua vontade de vencer os obstáculos, de ir «para além do Mar Vermelho».
3. Religiosidade
O terceiro ponto
que gostava de focar prende-se com a escolha do título, inspirado em
extremamente simbólico texto bíblico (Êxodo,
14, 5-31): a passagem do Mar Vermelho, hoje arqueologicamente confirmada
pelos achados no fundo deste mar, e até cientificamente explicada.
Viam
os Judeus na travessia para o Egipto uma tábua de salvação, após 40 anos
(sempre a magia do número 40!...) de arrastada e mui penosa peregrinação pela
aridez do deserto. Verificarão depois que haviam caído num logro e que a condição
de escravos os esperava, de facto. Conseguirão, alfim, voltar à Terra
Prometida.
Portanto,
que há para além do Mar Vermelho?
Esperança, incerteza e, de novo, esperança, ainda que dolorosa!
Nas
sete linhas que Carlos Carranca nos disponibilizou em jeito de prefácio é,
seguramente, essa a mensagem. O «desconforto de viver», se não houver «um
sentido para além da morte»: desconforto, sim, com fome no corpo e sede na
alma, quando corremos no dia-a-dia, e não pensamos na bonança e não paramos
para reflectir sobre esse sentido último. Quando, porém, o repouso é forçado,
acabamos por atribuir ao tempo uma outra dimensão, tomamos consciência de que é
ele a nossa maior riqueza a sabiamente rendibilizar: «E desse tempo de repouso,
talvez ganhes outro tempo – o que te falta agora», conclui o autor. E tem
razão.
4. Um apontamento
Outros saberão,
muito melhor do que eu, escalpelizar o sentido último dos curtos poemas de
Carlos Carranca.
Mais
reflexões do que poemas serão. Ou, se se quiser, reflexões em jeito de poemas,
que a mim me recordam os Pensamentos do
imperador romano Marco Aurélio:
«O
tempo é como um rio que os acontecimentos formassem, um rio torrentoso... Mal
uma coisa se anuncia, ei-la que já lá vai: no seu lugar já está outra em jeito
de abalada» (IV 43).
Ou
os aforismos do livro Caminho, de
Monsenhor Escrivá:
«Que a tua vida não seja uma vida estéril. Sê útil. Deixa
rasto».
Ou,
ainda, um dos meus livros de cabeceira, de Michel Quoist, Réussir, a que, em português, se deu o título de Construir:
«À
mesa, quando enches os copos, enches um de cada vez. Na vida, é necessário
encher de cada vez um minuto, se não certos instantes transbordarão, ao passo
que outros ficarão vazios».
E
– queiramos ou não – é muito no âmbito religioso, da relação do Homem com uma
entidade superior (chame-se-lhe como se quiser), que se situa a palavra, dita
ou escrita. Essa consciencialização da enorme importância do «verbo» – In principio erat Verbum, lê-se nas primeiras
linhas do Evangelho de João (1, 1) – está bem patente no poema da pág. 19:
Por uma palavra serei salvo.
Por
uma palavra
terei
por detrás
toda
a arquitectura do mundo.
Assim é, de facto.
E nem vale a pena citar casos históricos e muito haverá da nossa vida pessoal, quotidiana,
em que foi uma palavra que nos ergueu!...
Não
creio ser preciso dizer mais para sublinhar quanto este livrinho detém a vocação
de ser livro de cabeceira, a reler uma e outra vez, no crepúsculo do adormecer,
para, na manhã seguinte, escancararmos a janela, olharmos o movimento apressado
da rua e proclamarmos para nós mesmos:
«Por
uma palavra serei salvo».
Hoje,
direi palavras salvíficas!
Bem
hajas, Carlos Carranca, pela eloquente lição!
José d’Encarnação
Nota: É o texto da apresentação
do livro, que me foi dada a oportunidade de dizer, a 16 de Novembro de 2017, no
palco do Teatro Mirita Casimiro, ao Monte Estoril. O livro foi editado por
Talentilicious, Figueira da Foz, 2017.
Instantâneo da apresentação, no Teatro Mirita Casimiro. |
Publicado
em Cyberjornal, 29-12-2017:
Carlos Carranca, 6-01-2018, 12:01
ResponderEliminarCompanheiro, como sempre... lindíssimo! Apanhaste a dimensão existencial (talvez existencialista) do livro e a sua carga religiosa. Muito obrigado por continuares a ser "o mágico das pedras" e também das letras que tão bem sabes desocultar, trazer à luz do dia para que todos possam desfrutar da sua beleza. Um forte abraço fraternal.
14:33
EliminarFico de ego titilado. Somos muito do que os estímulos nos proporcionam. Neste caso, o estímulo foi determinante! Abraço!