sábado, 30 de dezembro de 2017

Vamos ganhar outro tempo!

Nota acerca do livro «Para além do Mar Vermelho», de Carlos Carranca
 
1. Testemunho
            «Testemunho», a primeira palavra que me ocorre, depois de ler este livrinho de poemas de Carlos Carranca.
            Testemunho, porque demonstra não implicar a doença um abandono da vida. Carlos continuou a fazer projectos, a escrever, enriquecido por esta experiência que não deixa de ser ímpar quando nos toca a nós.

2. Afirmação de si como pessoa
            Afirmação de si como pessoa: a segunda ideia que de imediato me sobreveio. Afirmação patente na apresentação do título, escrito pelo seu próprio punho.
            Sou, como se sabe, epigrafista. Essa, a minha especialidade académica. Estou, portanto, habituado a lidar diariamente com a escrita, não só no conteúdo, mas, de modo especial, na forma. Não é que haja enveredado pela grafologia; reconheço, porém, que – ainda que inconscientemente – a maneira de escrever que adoptámos foi paulatinamente moldada pela nossa personalidade, pela imagem que desejamos transmitir.
            Pode Carlos Carranca nem ter pensado nisso. Ele o dirá, se assim o entender. E nem uma palavra troquei com ele a este propósito. O certo é que ter optado por ser a sua escrita a figurar na capa, o branco sobre um fundo verde-esperança e, sobretudo, no sentido vertical ascendente, com aquela acentuada haste do p e a evidência do acento agudo, com o nome – esse, sim, em letra de imprensa – mui discretamente acachapado ao fundo, tudo isso constitui reflexo evidente da sua vontade de vencer os obstáculos, de ir «para além do Mar Vermelho».

3. Religiosidade
            O terceiro ponto que gostava de focar prende-se com a escolha do título, inspirado em extremamente simbólico texto bíblico (Êxodo, 14, 5-31): a passagem do Mar Vermelho, hoje arqueologicamente confirmada pelos achados no fundo deste mar, e até cientificamente explicada.
            Viam os Judeus na travessia para o Egipto uma tábua de salvação, após 40 anos (sempre a magia do número 40!...) de arrastada e mui penosa peregrinação pela aridez do deserto. Verificarão depois que haviam caído num logro e que a condição de escravos os esperava, de facto. Conseguirão, alfim, voltar à Terra Prometida.
            Portanto, que há para além do Mar Vermelho? Esperança, incerteza e, de novo, esperança, ainda que dolorosa!
            Nas sete linhas que Carlos Carranca nos disponibilizou em jeito de prefácio é, seguramente, essa a mensagem. O «desconforto de viver», se não houver «um sentido para além da morte»: desconforto, sim, com fome no corpo e sede na alma, quando corremos no dia-a-dia, e não pensamos na bonança e não paramos para reflectir sobre esse sentido último. Quando, porém, o repouso é forçado, acabamos por atribuir ao tempo uma outra dimensão, tomamos consciência de que é ele a nossa maior riqueza a sabiamente rendibilizar: «E desse tempo de repouso, talvez ganhes outro tempo – o que te falta agora», conclui o autor. E tem razão.

4. Um apontamento
            Outros saberão, muito melhor do que eu, escalpelizar o sentido último dos curtos poemas de Carlos Carranca.
            Mais reflexões do que poemas serão. Ou, se se quiser, reflexões em jeito de poemas, que a mim me recordam os Pensamentos do imperador romano Marco Aurélio:
            «O tempo é como um rio que os acontecimentos formassem, um rio torrentoso... Mal uma coisa se anuncia, ei-la que já lá vai: no seu lugar já está outra em jeito de abalada» (IV 43).
            Ou os aforismos do livro Caminho, de Monsenhor Escrivá:
            «Que a tua vida não seja uma vida estéril. Sê útil. Deixa rasto».
            Ou, ainda, um dos meus livros de cabeceira, de Michel Quoist, Réussir, a que, em português, se deu o título de Construir:
            «À mesa, quando enches os copos, enches um de cada vez. Na vida, é necessário encher de cada vez um minuto, se não certos instantes transbordarão, ao passo que outros ficarão vazios».
            E – queiramos ou não – é muito no âmbito religioso, da relação do Homem com uma entidade superior (chame-se-lhe como se quiser), que se situa a palavra, dita ou escrita. Essa consciencialização da enorme importância do «verbo» – In principio erat Verbum, lê-se nas primeiras linhas do Evangelho de João (1, 1) – está bem patente no poema da pág. 19:
 
                                   Por uma palavra serei salvo.
                                   Por uma palavra
                                   terei por detrás
                                   toda a arquitectura do mundo.

            Assim é, de facto. E nem vale a pena citar casos históricos e muito haverá da nossa vida pessoal, quotidiana, em que foi uma palavra que nos ergueu!...
            Não creio ser preciso dizer mais para sublinhar quanto este livrinho detém a vocação de ser livro de cabeceira, a reler uma e outra vez, no crepúsculo do adormecer, para, na manhã seguinte, escancararmos a janela, olharmos o movimento apressado da rua e proclamarmos para nós mesmos:
            «Por uma palavra serei salvo».
            Hoje, direi palavras salvíficas!
            Bem hajas, Carlos Carranca, pela eloquente lição!

                                                                                  José d’Encarnação

Nota: É o texto da apresentação do livro, que me foi dada a oportunidade de dizer, a 16 de Novembro de 2017, no palco do Teatro Mirita Casimiro, ao Monte Estoril. O livro foi editado por Talentilicious, Figueira da Foz, 2017.

Instantâneo da apresentação, no Teatro Mirita Casimiro.

2 comentários:

  1. Carlos Carranca, 6-01-2018, 12:01
    Companheiro, como sempre... lindíssimo! Apanhaste a dimensão existencial (talvez existencialista) do livro e a sua carga religiosa. Muito obrigado por continuares a ser "o mágico das pedras" e também das letras que tão bem sabes desocultar, trazer à luz do dia para que todos possam desfrutar da sua beleza. Um forte abraço fraternal.

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    1. 14:33
      Fico de ego titilado. Somos muito do que os estímulos nos proporcionam. Neste caso, o estímulo foi determinante! Abraço!

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