E
um vulto sobressaiu, por todos evocado como Homem, como Escritor, como Poeta,
como Tradutor insigne, em suma, eminentemente como Homem de Cultura: Vasco
Graça Moura, que durante anos presidiu a este júri e até mesmo já atormentado
pela doença que cedo (é sempre cedo!...) o arrebataria do nosso convívio.
Mas,
claro, doutra personalidade se falou também, porque a ele se deve, incontestavelmente,
a teimosia em envolver o Casino nessa aura cultural: Mário Assis Ferreira. Foi desde
que assumiu as rédeas da Estoril-Sol que a Sociedade se converteu decisivamente,
contra tudo e contra todos, em paladina das Artes Plásticas, das Artes do
Espectáculo, da Literatura, com os prémios que instituiu e com a regular publicação
da revista Egoísta, um primor de edição!
Foi
Dinis de Abreu o mestre-de-cerimónias, apresentando os oradores a uma assistência
que encheu por completo o teatro do Casino Estoril.
Mário
Assis Ferreira começou por assinalar o «profundo significado» que esta sessão
detinha, «pela importância e pelo interesse que lhe dedicamos», como elevada
manifestação de Cultura. Evocou, emotivamente, a combatividade extrema e
exemplar de Vasco Graça Moura; sublinhou os laços de amizade e de uma certa cumplicidade
que o unem ao galardoado com o Prémio Cidadania Cultural, José Carlos
Vasconcelos e fez-se eco do que o júri realçara no romance Flores, de Afonso Cruz, a que fora atribuído o Prémio Fernando
Namora: a elevada qualidade estética aliada a uma estrutura sabiamente modelar.
Não deixou de salientar o que atrás se referiu: ser a Cultura a tónica dominante
da Estoril-Sol sobretudo desde 1987; ter aceitado o desafio da Cultura,
«infelizmente tão solitário»; ter-se entregado «com fé aos ideais que preconiza
num tempo marcado por tantos egoísmos».
Coube
ao presidente do júri, Guilherme d'Oliveira Martins, descrever, a traços largos,
o perfil de Afonso Cruz, escritor, músico, «uma das certezas da actual literatura
portuguesa», numa obra de elevada qualidade estética, em que o autor soube
aliar a humanitas à compreensão do
quotidiano, na sua complexidade. «Há sempre flores para aqueles que as quiserem
ver». De José Carlos Vasconcelos disse ser uma «personalidade ímpar», «cidadão
exemplar», «contra ventos e marés defensor das culturas de língua portuguesa»,
tal como Vasco Graça Moura. «Uma das figuras mais marcantes da vida portuguesa»,
disse, acrescentando: «Não é possível falar hoje da difusão da Cultura
Portuguesa sem uma referência a José Carlos de Vasconcelos», designadamente
através do seu Jornal de Letras, «um
jornal único, que muito preza o rigor, o diálogo, a divulgação, um serviço público
da maior importância, na prossecução do bem comum».
Coube
ao Presidente da Republica entregar os galardões, duas singulares obras escultóricas;
e Assis Ferreira entregou os sobrescritos com os prémios pecuniários.
Paulo
Teixeira Pinto, representante da editora Babel, que patrocina a publicação, considerou
um privilégio o poder estar a sua editora associada a esta iniciativa, cuja
relevância acentuou. Pela editora, integrara o júri o Doutor José Carlos Seabra Pereira, professor
associado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Afonso
Cruz agradeceu o galardão e, num improviso estudado (embora tenha dito que já
se não lembrava bem do livro, porque, entretanto, já escrevera outro!...),
teceu considerações sobre a importância da memória, da História, temática que –
sublinhou – é, em seu entender, o ponto fulcral do romance. «Nasci em 1971, não
sei o que é viver em ditadura». O que é que pode mudar? Os modelos que apresentamos
às nossas crianças, que não são Gandhi ou Mandela, mas os super-heróis – e devem
ser essoutros que importa imitar, bons modelos, no regresso a uma moral ontológica
e não teleológica, pois «a memória é plástica, nós podemos moldá-la; a imaginação
é criadora».
José
Carlos Vasconcelos – depois de se referir a Marcelo Rebelo de Sousa como «um
Chefe de Estado que tem sentido de Estado e não pose de Estado, que está em
muita parte e não em toda a parte» – agradeceu a honra que lhe fora concedida,
«honra redobrada», frisou, atendendo ao patrono do galardão, Vasco Graça Moura,
e ao facto de o primeiro galardoado ter sido Eduardo Lourenço, que estava
presente.
Leu
o seu minucioso discurso, porque apostara – como o estavam a apresentar como
cidadão cultural – em fazer o balanço do que fora a sua vida, que não se cingira,
até aqui, aos 37 anos consecutivos à frente do Jornal de Letras, que fundara e, apesar das dificuldades, teimava
em manter.
Começara
a escrever aos 13 anos, tendo dirigido duas páginas literárias em jornais
locais. Esteve em todas as lutas académicas de Coimbra nos anos 70. Foi actor
no TEUC – o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, e sempre o
norteou, em seguida, o exercício das duas profissões que sempre quis ter: ser
advogado e escritor. Afastado das redacções, em 1971, pela Censura, viria a assinar,
já depois do 25 de Abril, o programa televisivo «Escrever é Lutar». Integrou a redacção
d’O Jornal. Esteve na origem da TSF –
Rádio Jornal. Afirmou-se defensor da língua, que «é a nossa principal riqueza,
aspecto que parece estar a ser esquecido no âmbito da lusofonia». Liberdade,
justiça e ética – são palavras que norteiam a sua actividade, «a política como ética
e prática em acção». «Não sei quanto tempo vou resistir», «Não procuro qualquer
lugar em qualquer galeria de retratos», confessou, a terminar – e o seu
testemunho calou fundo em quantos longamente o aplaudiram depois.
O
Presidente da República quis apresentar três notas prévias ao discurso que trazia
escrito: 1ª) Estamos num encontro de cidadania cultural, porque este é «um acto
de resistência cultural»; 2ª) Vê com alegria a reedição da obra de Fernando Namora,
porque a falta de memória «é um pecado que esta casa não cometeu»; 3ª) De Vasco
Graça Moura salientou o ter sido «tão excelente tradutor», o que, em certa
medida, pode ter obnubilado as muitas causas em que se empenhou e dispersou.
Quanto
à obra Flores, classificou-a como «um
dos livros mais autobiográficos e simultaneamente mais pungentes» de Afonso
Cruz, «um dos seus livros mais interventivos» – e a sua (dele, Afonso Cruz) «não
foi uma intervenção de circunstância».
Referindo-se
a José Carlos Vasconcelos, seu vizinho e amigo de longa data, teve em conta o circunstanciado
currículo que ele fizera gala em apresentar – «para que conste» (escrevo eu); não
hesitou em declarar que «atravessamos um período crítico da imprensa portuguesa»,
incitando os mais jovens a manterem essas pontes que José Carlos Vasconcelos sempre
procurou estabelecer entre Portugal e o Brasil. Dos dois galardoados não quis
deixar de salientar ainda a sua «generosa humildade». E terminou marcando
«presença, desde já, para o próximo ano, em nome da resistência cultural».
José d’Encarnação
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