quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Amplo louvor à cultura numa instituição singular

             Antes de dar conta do que foi a cerimónia de entrega dos prémios Vasco Graça Moura (Cidadania Cultural) e Fernando Namora (Literatura), referentes a 2017, instituídos pela Estoril-Sol, importa salientar a tónica que perpassou por toda a sessão, ocorrida, sob a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa, no final da tarde de quinta-feira, 12 de Outubro: a ênfase dada à Cultura numa ‘casa’, onde, à partida, só era presumível pensar-se em jogo, em dinheiro, slot-machines, bacará e ‘entretenhas’ afins, sempre vulgarmente mais relacionadas com aspectos menos lisonjeiros da nossa existência.

            E um vulto sobressaiu, por todos evocado como Homem, como Escritor, como Poeta, como Tradutor insigne, em suma, eminentemente como Homem de Cultura: Vasco Graça Moura, que durante anos presidiu a este júri e até mesmo já atormentado pela doença que cedo (é sempre cedo!...) o arrebataria do nosso convívio.

            Mas, claro, doutra personalidade se falou também, porque a ele se deve, incontestavelmente, a teimosia em envolver o Casino nessa aura cultural: Mário Assis Ferreira. Foi desde que assumiu as rédeas da Estoril-Sol que a Sociedade se converteu decisivamente, contra tudo e contra todos, em paladina das Artes Plásticas, das Artes do Espectáculo, da Literatura, com os prémios que instituiu e com a regular publicação da revista Egoísta, um primor de edição!

            Foi Dinis de Abreu o mestre-de-cerimónias, apresentando os oradores a uma assistência que encheu por completo o teatro do Casino Estoril.

            Mário Assis Ferreira começou por assinalar o «profundo significado» que esta sessão detinha, «pela importância e pelo interesse que lhe dedicamos», como elevada manifestação de Cultura. Evocou, emotivamente, a combatividade extrema e exemplar de Vasco Graça Moura; sublinhou os laços de amizade e de uma certa cumplicidade que o unem ao galardoado com o Prémio Cidadania Cultural, José Carlos Vasconcelos e fez-se eco do que o júri realçara no romance Flores, de Afonso Cruz, a que fora atribuído o Prémio Fernando Namora: a elevada qualidade estética aliada a uma estrutura sabiamente modelar. Não deixou de salientar o que atrás se referiu: ser a Cultura a tónica dominante da Estoril-Sol sobretudo desde 1987; ter aceitado o desafio da Cultura, «infelizmente tão solitário»; ter-se entregado «com fé aos ideais que preconiza num tempo marcado por tantos egoísmos».

            Coube ao presidente do júri, Guilherme d'Oliveira Martins, descrever, a traços largos, o perfil de Afonso Cruz, escritor, músico, «uma das certezas da actual literatura portuguesa», numa obra de elevada qualidade estética, em que o autor soube aliar a humanitas à compreensão do quotidiano, na sua complexidade. «Há sempre flores para aqueles que as quiserem ver». De José Carlos Vasconcelos disse ser uma «personalidade ímpar», «cidadão exemplar», «contra ventos e marés defensor das culturas de língua portuguesa», tal como Vasco Graça Moura. «Uma das figuras mais marcantes da vida portuguesa», disse, acrescentando: «Não é possível falar hoje da difusão da Cultura Portuguesa sem uma referência a José Carlos de Vasconcelos», designadamente através do seu Jornal de Letras, «um jornal único, que muito preza o rigor, o diálogo, a divulgação, um serviço público da maior importância, na prossecução do bem comum».

            Coube ao Presidente da Republica entregar os galardões, duas singulares obras escultóricas; e Assis Ferreira entregou os sobrescritos com os prémios pecuniários.

            Paulo Teixeira Pinto, representante da editora Babel, que patrocina a publicação, considerou um privilégio o poder estar a sua editora associada a esta iniciativa, cuja relevância acentuou. Pela editora, integrara o júri o Doutor José Carlos Seabra Pereira, professor associado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

            Afonso Cruz agradeceu o galardão e, num improviso estudado (embora tenha dito que já se não lembrava bem do livro, porque, entretanto, já escrevera outro!...), teceu considerações sobre a importância da memória, da História, temática que – sublinhou – é, em seu entender, o ponto fulcral do romance. «Nasci em 1971, não sei o que é viver em ditadura». O que é que pode mudar? Os modelos que apresentamos às nossas crianças, que não são Gandhi ou Mandela, mas os super-heróis – e devem ser essoutros que importa imitar, bons modelos, no regresso a uma moral ontológica e não teleológica, pois «a memória é plástica, nós podemos moldá-la; a imaginação é criadora».

            José Carlos Vasconcelos – depois de se referir a Marcelo Rebelo de Sousa como «um Chefe de Estado que tem sentido de Estado e não pose de Estado, que está em muita parte e não em toda a parte» – agradeceu a honra que lhe fora concedida, «honra redobrada», frisou, atendendo ao patrono do galardão, Vasco Graça Moura, e ao facto de o primeiro galardoado ter sido Eduardo Lourenço, que estava presente.

            Leu o seu minucioso discurso, porque apostara – como o estavam a apresentar como cidadão cultural – em fazer o balanço do que fora a sua vida, que não se cingira, até aqui, aos 37 anos consecutivos à frente do Jornal de Letras, que fundara e, apesar das dificuldades, teimava em manter.

            Começara a escrever aos 13 anos, tendo dirigido duas páginas literárias em jornais locais. Esteve em todas as lutas académicas de Coimbra nos anos 70. Foi actor no TEUC – o Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra, e sempre o norteou, em seguida, o exercício das duas profissões que sempre quis ter: ser advogado e escritor. Afastado das redacções, em 1971, pela Censura, viria a assinar, já depois do 25 de Abril, o programa televisivo «Escrever é Lutar». Integrou a redacção d’O Jornal. Esteve na origem da TSF – Rádio Jornal. Afirmou-se defensor da língua, que «é a nossa principal riqueza, aspecto que parece estar a ser esquecido no âmbito da lusofonia». Liberdade, justiça e ética – são palavras que norteiam a sua actividade, «a política como ética e prática em acção». «Não sei quanto tempo vou resistir», «Não procuro qualquer lugar em qualquer galeria de retratos», confessou, a terminar – e o seu testemunho calou fundo em quantos longamente o aplaudiram depois.

            O Presidente da República quis apresentar três notas prévias ao discurso que trazia escrito: 1ª) Estamos num encontro de cidadania cultural, porque este é «um acto de resistência cultural»; 2ª) Vê com alegria a reedição da obra de Fernando Namora, porque a falta de memória «é um pecado que esta casa não cometeu»; 3ª) De Vasco Graça Moura salientou o ter sido «tão excelente tradutor», o que, em certa medida, pode ter obnubilado as muitas causas em que se empenhou e dispersou.

            Quanto à obra Flores, classificou-a como «um dos livros mais autobiográficos e simultaneamente mais pungentes» de Afonso Cruz, «um dos seus livros mais interventivos» – e a sua (dele, Afonso Cruz) «não foi uma intervenção de circunstância».

            Referindo-se a José Carlos Vasconcelos, seu vizinho e amigo de longa data, teve em conta o circunstanciado currículo que ele fizera gala em apresentar – «para que conste» (escrevo eu); não hesitou em declarar que «atravessamos um período crítico da imprensa portuguesa», incitando os mais jovens a manterem essas pontes que José Carlos Vasconcelos sempre procurou estabelecer entre Portugal e o Brasil. Dos dois galardoados não quis deixar de salientar ainda a sua «generosa humildade». E terminou marcando «presença, desde já, para o próximo ano, em nome da resistência cultural».

                                                            José d’Encarnação

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