quarta-feira, 14 de março de 2018

A arte de bem dizer!

            A partir de certa idade, sabe-se, há uma série de funções cuja operacionalidade se perde. Ele é a vista, ele é o ouvido (e todas as semanas recebemos publicidade de aparelhos cada vez mais discretos e sofisticados…), ele é o andar sem tropeços…
            Então o ouvido – e têm razão as múltiplas empresas que nos assediam –, uma lástima! E a gente queixa-se de que são os outros que falam baixinho. Às vezes, é isso, mormente quando há barulhos por perto, a famigerada televisão, por exemplo, no momento dos anúncios, em que eles elevam o diapasão para até ancião ouvir!...
            Creio, portanto, que devo a essa minha categoria de ancião o facto de nada – mas mesmo nada! - ter compreendido da letra cantada pela Cláudia Pascoal. Consolou-me, nos dias seguintes, ter ouvido, aqui e além, que mais amigos houvera na mesma onda: nada haviam percebido! Se calhar, não era mesmo para se perceber, porque quem estava afim de votar já teria ido à Internet ou a qualquer outro sítio bisbilhotar a letra da canção que haveria de sair vencedora.
            Sou dos privilegiados que tiveram lições de dicção, em hora de tempos livres, salvo o erro no ano lectivo de 1962-63. E nas escolas salesianas por onde antes andara, o teatro declamado e mesmo a opereta estavam presentes nas festas ao longo do ano e, desta forma, a gente desemburrava e habituava-se a encarar o público e a colocar bem a voz, como se faz na Escola Profissional de Teatro de Cascais.
            Queixei-me, outro dia, ao Provedor do Ouvinte da RDP. Uma das senhoras que, no Programa da Manhã, apresenta, uma vez por semana, a crónica d’O Fio da Meada, é tão monocórdica a ler o texto que o ouvinte, se quer escutá-la, tem de fazer esforço complementar. João Paulo Guerra bem me respondeu que já falara do assunto à Direcção de Programas; devem ter, porém, receio de melindrar a senhora e… logo se muda depois das férias!...
            Os estudantes de Teatro e de Comunicação aprendem: uma situação é ler, outra é dizer! Mas a linguagem radiofónica não se compadece com uma singela leitura, sempre no mesmo tom. Também «ler» pode – e deve! – ser «dizer»! Falar, mesmo que se tenha um papel e um microfone à frente!
            Nunca mais esquecerei o que se passou comigo e com Rafael Correia, o homem d’O Lugar ao Sul, que percorria montes e vales pelo Algarve e pelo Alentejo a falar com o Povo e, ao sábado de manhã, nós nos regalávamos com aquele falar alentejano e algarvio marafado, mas que todo o mundo entendia. Então porquê? Já explico. Rafael Correia falou comigo duas vezes, em entrevista, quando, na década de 70, passávamos boa parte do Verão nas campanhas arqueológicas da villa romana de São Cucufate (Vila de Frades, Vidigueira). A segunda vez não precisou de me advertir; mas da primeira, ainda não tinham passado uns segundos, já ele estava a desligar o microfone:
            ‒ Professor, esqueça! Eu vim aqui para falar consigo! Portanto, faça-me um favor: fale naturalmente comigo, não se preocupe com o microfone!
            Aprendi.
            E quando, anos mais tarde, mantive, durante mais de 14 anos, em Rádio Clube de Cascais, aos domingos, das 11 ao meio-dia, «A falar é que a gente se entende», a conversa com um convidado, foi esse o princípio que segui. Conversa, não discurso. Como se à mesa do café nos encontrássemos. E recordarei sempre a ‘partida’ que, por ser assim, poderei ter pregado a Isaltino de Morais. No final do programa, voltou-se para mim:
            – Você levou-me a dizer o que eu não queria! Esqueci-me por completo do microfone!...
            Custa-me, como docente, ouvir que se fala e se escreve sem cuidado. Sabe-se agora que Cláudia Pascoal terá preparado uma cantiga de apoio à candidatura do primo Custódio, em 2013, à União de Freguesias de Arco de Baúlhe e Vila Nune, em Cabeceiras de Basto. O primo, escreveu ela, garantia "uma liderança há [sic] maneira"!...
            A concluir, vamos, então, por aí, pelas calinadas gramaticais quotidianas:
            «Mas, no entanto»… Não! Ou é «mas» ou é «no entanto». «E a postura dela…». Não! Postura é a quantidade de ovos que uma ave põe; em relação aos humanos, é posição, atitude! «Viestes? Ainda bem que viestes!». Não! Na 2ª pessoa do singular, é «vieste», «tu vieste»! «E há cinco anos atrás…». Poderia ser… há cinco… à frente? Se pões «há», tens de omitir o «atrás». «Pois é, tens razão, são pequenos pormenores…». Errado! Um pormenor é pequeno, não há pormenor grande!

                                                                    José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 225, 2018-03-14, p. 6.

 

1 comentário:

  1. Quatro comentários que foram feitos no FB, a 14-03-2018, e que agradeço:

    Padre David (salesiano):
    Que útil e oportuno texto! Muitas vezes desligo, por me irritar o modo de pronunciar algumas palavras por locutores que deviam ter preparação para falar. E não têm.
    Da cantiga da Cláudia também não percebi nada.
    Mas aquelas referências ao teatro salesiano, lembram como era.
    Muito bem, Professor amigo.

    Joaquim Manuel da Fonseca
    Muitas saudades desse programa excepcional...também

    Ana Claré Muito bom, senhor meu compadre.

    Zelia Marques Rodrigues
    Que nunca te canses de apontar estas situações!
    Também eu ouvia "O lugar ao sul"!

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