quarta-feira, 28 de março de 2018

O prefeito dos artífices

            O exercício de um cargo político representa sempre uma grande aprendizagem. Se, no dia-a-dia de uma empresa ou, até, nas relações familiares, se reclamam tacto e bom senso, para, à noite, se lograr sono repousante, a política, como gestão da cidade e dos cidadãos, implica toda uma atenção ao pormenor, ao gesto, à palavra dita e por dizer. Para além, obviamente, dos aspectos técnicos próprios de cada actividade. Poderá imaginar-se que o ministro ou o secretário de Estado da Cultura ou os respectivos assessores apenas necessitarão de conhecer, o melhor possível, os meandros por onde a Cultura se movimenta; nada mais errado, reconhece-se, porque há toda uma engrenagem económica, financeira e social que importa ter em consideração.
            Um complexo saber «de experiências feito», como o do Velho do Restelo, que dia após dia superiormente se enriquece. Não admira, pois, que, acabada a «comissão de serviço» – assim se costumava chamar e como tal o entendiam os Romanos –, amplos caminhos se abram para que o político experiente possa continuar a aplicar a sua sabedoria nos mais diversos ramos de actividade, nomeadamente o económico. Por isso há tanta gente a querer ir para político. O que lá se aprende!...
            Ao sair de ministro ou de secretário de Estado, ao senhor engenheiro ou ao senhor dr. surge toda uma rica panóplia de oportunidades, que passam, de um modo geral, pela administração de empresas, inclusive aquelas que alguma vez foram públicas, pois são essas as mais próximas dos esquemas oficiais. E também, obviamente, pelo Ensino, para mais facilmente poderem transmitir o que aprenderam. Assim Mário Soares, após ter saído da política activa, numa das faculdades da Universidade de Coimbra.
            O problema põe-se com mais acutilância no que se refere aos municípios. ¿Que fazer dos vereadores cujos mandatos findaram? ¿Onde vai pôr-se essa dezena de assessores que, por gozarem da nossa total confiança, nós contratámos, em princípio apenas para serem nossos assessores? Bem, a questão dos assessores resolve-se: abre-se concurso propositadamente para esse efeito e tudo fica garantido. Questão maior é a dos vereadores ou dos presidentes de junta. Também para isso se encontrou solução: em vez de concentrar em si todos os serviços, a Câmara cria empresas municipais. Uma para o lixo, outra para o trânsito e as ruas, outra para as coisas da Cultura (sim, ponho com maiúscula, lixo e trânsito não ponho…), outra para as obras, outra para gerir os parquímetros… Exacto, os parquímetros foi uma das melhores invenções do final do século! Máquinas de fazer dinheiro. E havia que saber gerir esse dinheiro, essas empresas. A inserção nos respectivos conselhos de administração antoja-se, por conseguinte, como aplicação eficaz para fazer render talentos qualificados. E a palavra «render» surge aqui naturalmente, porque é ponto de honra para empresa que se preze atingir (ou, até, ultrapassar) os objectivos económicos fixados. Na verdade, cada empresa tem a sua contabilidade própria e se adrega a polícia municipal arrecadar dinheiro de multa aplicada a veículo doutra empresa municipal que o funcionário deixou, por momentos, mal estacionado, não há que olhar para trás! E se, mesmo em serviço, se se tem de pôr o carrinho de serviço, devidamente identificado, num parque com parquímetro (e hoje é raro o que os não tem), há que pagar, não há livre-trânsitos disponíveis!...
            Pensaram os cérebros dos cifrões e da eficácia que haviam descoberto a forma inovadora de rendibilizar outros cérebros e outras competências. Enganaram-se. Para quem, no tempo dos Romanos, seguiu com reconhecido êxito uma carreira municipal – e, note-se, na altura, não havia um presidente, havia dois e com direito de veto e o mandato era de um ano apenas! – abria-se a possibilidade de ascender à carreira equestre. Para isso, porém, passava por uma fase de aprendizagem, como ajudante de campo de uma personalidade importante, que o ia integrando na máquina político-administrativa. Chamava-se prefeito dos artífices, em latim o praefectus fabrum. «Artífices» eram todos os que bem sabiam manobrar… as artes, todas as artes!
      Veja-se esta inscrição achada em Lisboa e datável do século I da nossa era. Lúcio Cornélio Boco, natural de Alcácer do Sal («salaciense»), depois de ter sido eleito (também por apenas um ano) flâmine da província da Lusitânia, ou seja, promotor da devoção religiosa ao imperador (que o era por vontade dos deuses…), foi prefeito dos artífices por cinco vezes! Não que essa repetição se tivesse ficado a dever a dificuldades suas na aprendizagem, mas sim à excepcional competência demonstrada, dado que outras inscrições o confirmam para os membros da mesma família. Passa de seguida à carreira equestre, tendo sido nomeado tribuno da VIII Legião Augusta. O monumento foi mandado erigir por decreto dos decuriões, isto é, por deliberação da assembleia municipal de Lisboa (note-se!), prova do interesse em estar de bem com ele, agora que outros e mui vantajosos voos o esperavam…
De facto, assim é: «nada de novo sob o Sol»! Ou, como proclamava o nosso Gil Vicente, «Así se hacen las cosas» – como quem tem medo de o dizer em português!

                                                                            José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 225, 2018-03-28, p. 6.

1 comentário:

  1. Joaquim Almeida 2018-03-30:
    Comentário que diverte e não ofende. Ou melhor: eles,se o lerem,já não se ofendem...

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