sábado, 24 de março de 2018

Retalhos lusos em pano da Índia

             Uma das mais curiosas sensações que tive ao chegar a Londres e ao ver quantos comigo se cruzavam foi a variedade dos vistosos panos que as indianas envergavam. E aquela pintinha na testa, sinal da casta a que a sua portadora pertencia, tinha o condão de nos fazer sonhar com um tempo antigo, em que também por lá Portugal deixou raízes. O senhor que, de rosa vermelha em punho, nos aborda ao jantar no restaurante, «qué flô?», representará, porém, outra face da mesma medalha.
            Falei da Índia a um condiscípulo meu goês. E contou-me:
            ‒ Eu vim para Portugal em 1957; o meu pai foi o 1º português a ser expulso da Índia, nessa altura de Bombaim, por ser estrangeiro, português. Desde 1949 que a União Indiana queria expulsar tudo o que fosse civilização ocidental, depois da expulsão dos Ingleses, que possibilitou a independência da União Indiana, ou seja, nessa altura, a união da Índia com o Paquistão, o actual Bangladesh, o Tibete, o Butão e o Sri Lanka. Infelizmente, Goa não se soube impor. O meu pai bem quis e Salazar retorquia-lhe: «F., eu sei que Goa está apta a ter autonomia, mas dar-lha seria abrir um precedente!». Assim, ficámos à mercê dos indianos. E os goeses foram engolidos. Hoje, a cultura goesa em Goa não existe. Foi uma invasão e a destruição da cultura dos goeses. Os académicos, "vendidos" aos partidos, não falam sobre esta realidade.
            Estava a ouvi-lo e lembrava-me de Sousa Lara me ter contado que, quando lá foi, em 1992, integrando, como Secretário de Estado da Cultura, a comitiva de Mário Soares, um senhor de idade o convidou a ir a casa dele e mostrou-lhe, escondidos numa arca, os livros antigos, aqueles por onde nós estudámos na Instrução Primária:
            ‒ Guardo-os aqui ciosamente, sabe. E é por eles que eu ensino a língua portuguesa aos que a querem aprender!
            Sousa Lara acabaria por mandar enviar-lhe muitos mais livros para ele poder continuar a sua nobre missão de manter acesa a chama da portugalidade nessa longínqua paragem.
            E recordei as imagens que Maria Júlia Fernandes fez em Baçaim, no Convento dos Agostinhos em ruínas: o chão da nave principal da igreja era um mar ininterrupto de lápides funerárias, com os nomes de portugueses ilustres e brasões de famílias nobres e tudo isso iria, daí a pouco, ficar debaixo de sólida camada de cimento…
            Também esses são retalhos lusos em manto indiano. E quando, a 10 de Dezembro de 2017, no âmbito da série «Um poema na vila», iniciativa de Ana de Freitas, se ouviram, no Auditório José Labaredas do Museu Municipal de Coruche, «Contares e Cantares de Goa», pelo Grupo Ekvat da Casa de Goa, voltámos a ter consciência disso: urge fazer reluzir esses retalhos no manto indiano. Raízes escondidas que poderão frutificar!
                         José d'Encarnação


Publicado em Ponto & Vírgula, jornal do Gabinete de Imagem e Comunicação da Escola Calazans Duarte, da Marinha Grande, edição de Março de 2018, p. 19.                                     

Gentileza de Elisabeth Le Paige: a fotografia a que se refere
no comentário que tomei a liberdade de transcrever infra.
O monumento que assinala, em Calecute, o local onde
desembarcou Vasco da Gama, aquando da chegada à Índia, em 1498.
                                                                      

4 comentários:

  1. finalmente alguem escreve a verdade sobre Goa, mas ainda ninguem falou da condenação pelo Tribunal de Haia à invasão de Goa pelas forças indianas.

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  2. Já passaram alguns dias desde que o meu colega goês teceu novos comentários sobre o que se escreveu; afigura-se-me, todavia, que merece partilha o que me escreveu.
    O pai foi expulso de Goa em 4 de Julho de 1954, por força do Foreigner Act: os indianos consideraram-no estrangeiro, por ser português; no entanto, acrescentou, numa carta que Nehru dirigira ao pai, em 1946, manifestava já a sua intenção de expulsar os estrangeiros de Goa e invadir Goa e as possessões francesas na Índia.
    Haverá muito a fazer para que Goa e os portugueses originários da Índia possam vir a ser tidos em devida consideração. Deu-me dois exemplos:
    «Estive, há dias, a ler uma obra sobre as casas do Sacete, Goa, feita por um grupo de investigadores. Na bibliografia não havia uma única referência acerca do que tinha sido escrito sobre a mesma realidade pelos nossos antecessores!! Apenas o que tinha sido escrito em 2002 e por indianos sediados em Londres!!! E os nossos historiadores que tanto têm escrito sobre as casas em Goa desde 1580 - nada?? E são investigadores?? E o que escreveu Raquel Soeiro de Brito –nada? E o Orlando Ribeiro – nada?».
    «Assisti, há anos, na Faculdade de Letras, a uma conferência sobre a literatura romântica em Goa. Imagina: não fizeram uma única referência aos poetas portugueses!!! Só aos poetas "britânicos indianistas"! Não sei o que é um britânico indianista!».

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  3. O depoimento de Elisabeth le Paige

    Creio que pode aduzir-se aqui, em complemento do que se escreveu sobre a Índia portuguesa, este depoimento de Elisabeth le Paige, ainda que exarado (a 11-4-2018) num outro contexto. Transcrevo-o, com a devida vénia:

    «Sou belga, a viver em Portugal há 18 anos, apaixonada pela história marítima de Portugal no mundo. Gostava de lhe contar um detalhe de uma viagem que fiz à Índia com a minha filha ao Estado do Kerala e, mais precisamente, à cidade de Kozhikode (antiga Calicut), onde passámos uns dias num hotel à beira-mar, situado frente à praia de Kappad. O motorista parou a minutos do hotel para nos mostrar onde Vasco da Gama pusera pé em terra. Junto envio uma foto do pequeno obelisco que comemora o desembarque do navegador nessa praia.
    E há mais. A longa parede por trás do balcão da recepção do Hotel é adornada com uma pintura mural gigantesca que representa a visita de Vasco da Gama ao Zamorim. O navegador em pé, o Zamorim sentado no seu trono. Todas as personagens pintadas são de dimensão superior à real. Impressiona. Fiquei fascinada também pelo gesto do motorista que nos mostrou o lugar, sem saber que vínhamos de Portugal. Da dominação inglesa não havia qualquer indicação.»

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    1. Agradeço a Elisabeth le Paige este eloquente testemunho. Na impossibilidade de inserir aqui a foto que gentilmente enviou, vou inseri-la no final do meu texto.

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