sábado, 17 de março de 2018

Ó màrraistaparta!

             ‒ Espera! O cabide caiu outra vez. É sempre assim: quando vais tirar uma camisa, há sempre um cabide ao lado que cai. E tu que ias fazer? Arreliar-te, vociferar e gritar, como apreendeste com teu pai quando se aborrecia e bramava «Ó màrraistaparta!»? Não se percebiam bem as palavras, mas ficava-se assim com a ideia de que era, mais ou menos, uma forma muito própria dele de exclamar «Raios te partam!». Espera, pois, não digas nada. Aproveita para fazer uma flexão. Isso. Vai mesmo até ao chão. Respira fundo. Pega no cabide e põe-no tranquilamente no varão. Vês? Fizeste um bom exercício, dominaste-te e, sobretudo, o teu pensamento semeou serenidade para o resto do dia. Doutra forma, arreliavas-te logo de manhãzinha e era certo e sabido que algo não iria correr bem na jornada.
            Não é novidade nenhuma esta ideia de dominar o pensamento. Ou melhor, de tomar consciência do valor do pensamento e de como nós, amiúde, o não sabemos aproveitar.
            Bem conhecida é aquela passagem do «Principezinho», de Saint-Exupéry, quando a raposa propõe ao príncipe que passem a encontrar-se a uma hora certa. E explica-lhe: é que, sabes, assim, eu, meia hora antes ou mais, já estou a antegozar o prazer do nosso encontro!... Cá está! O poder do pensamento!
            Admiro-me quando me dizem: Ah! Isso é matéria que tu dominas bem, vais lá, vinte minutos de conversa e pronto! Muito simples!... Muito simples? Vinte minutos? E os longos minutos que, bastantes dias antes, tu levas a pensar no que vais dizer, mesmo que só te lembres disso de vez em quando? Tomas um apontamento agora, outro amanhã…
            Outro dia, na sessão de homenagem a um amigo, o promotor garantia-nos que uma das características do homenageado era a da ubiquidade! Como assim? Não é a ubiquidade uma prerrogativa divina? E explicou: «É que nós imaginamos que ele está aqui, ao pé de nós, de corpo e alma. Não está, garanto eu! O corpo, sim, mas o espírito, o pensamento? Já está a pensar qual vai ser o tema do seu próximo artigo!...». Ora toma!
            E, num retiro que fiz em 1966, não resisti a escrever como comentário à frase «Não mates o tempo»: Quanto tempo se esvai nos nossos autocarros, em devaneios sem nexo!…
            Vês? Não gritaste «Ó màrraistaparta!» e ganhaste imensa serenidade!

                                               José d’Encarnação

Publicado em Renascimento (Mangualde), nº 727, 15-03-2018, p. 11.

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