quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Dicionário de Arqueologia Portuguesa

            Lançaram mãos Jorge de Alarcão, arqueólogo e professor catedrático aposentado da Universidade de Coimbra, e Mário Barroca, arqueólogo e professor associado com agregação da Universidade do Porto, à elaboração de um Dicionário de Arqueologia Portuguesa.
            A obra, de 420 páginas, contou com a colaboração dos professores João Luís Cardoso, para a Pré-História, e Raquel Vilaça, para a Proto-história, uma vez que aos dois coordenadores gerais caberiam, naturalmente, as épocas em que são especialistas: a Romana e a Medieval.
A edição, datada de 2012, esteve a cargo da Livraria Figueirinhas do Porto (ISBN: 978-972-661-219-3) e, conforme se lê na Apresentação, os editores não impuseram «quaisquer particulares condições» nem sugeriram «qualquer modelo». Aliás, diga-se desde já, que o modelo adoptado – o de «glossário ou vocabulário e, ao mesmo tempo, o de enciclopédia ou tratado» – se nos afigura assaz adequado ao fim em vista, porque, apresentado em duas colunas, em letra miudinha, o negrito de cada entrada (topónimo, etnónimo e/ou nome comum ou técnico – em português ou em latim) é suficientemente realçado para rapidamente se chegar aonde se quer, tanto mais que, como num dicionário normal, se pôs em cabeçalho a primeira palavra (página da esquerda) e a última (página da direita). Além disso, o formato (23,5 x 15,7 x 3) apresenta-se facilmente manuseável, o que muito importa em obra de frequente consulta, como esta.
            A Apresentação cumpre rigorosamente o seu papel: apresenta a obra, explicitando critérios, opções e objectivos, indicando o que presidiu à escolha deste verbete em detrimento de um outro. De resto, terminam os autores recomendando que se leiam as instruções de uso (p. 10). E, após a identificação dos 24 colaboradores seleccionados (louve-se o recurso à nova geração de arqueólogos), não se esquece o importante papel que teve José Luís Madeira no que se refere às ilustrações (só desenhos, nenhuma fotografia, a mostrar a relevância que o desenho detém em Arqueologia), que primam pela exactidão, num estilo a que esse técnico já nos habituou; realce-se também a esbelteza da própria capa, estilizado aceno às pinturas do Côa e homenagem implícita à Epigrafia no título do volume – o que, como epigrafista, muito me cativou e agradeço.
            20 páginas de bibliografia seleccionada (p. 359-398), legendas mais pormenorizadas das 170 imagens (p. 399-404), índice geográfico (p. 405-411) e índice temático (p. 413-417) completam este dicionário, que expressamente se declara de Arqueologia e não «da Arqueologia Portuguesa». Poderá supor-se que é de somenos esta diferença semântica; não o é, porque o «da» implicaria, a meu ver, a referência aos agentes, ou seja, aos arqueólogos – e essa é função não para um dicionário mas, de modo especial, para uma História da Arqueologia, como aquela, a título de exemplo, a que Carlos Fabião lançou mão e, mesmo assim, com todo o cuidado também no título: Uma História da Arqueologia Portuguesa (Clube do Coleccionador dos CTT, Lisboa, 2012).
            Numa apreciação geral, que não se prende – como é óbvio – com a especificidade de cada um dos verbetes, dir-se-á que se trata de uma obra susceptível de interessar e de ser muito útil não apenas para os arqueólogos já credenciados, que poderão ver aqui como se faz uma síntese, como em poucas palavras se consegue dizer muito, mas também para os estudantes e, até, para o público em geral, designadamente aquele que alguma vez se deixou seduzir pelo indiscutível fascínio que esta disciplina detém.
Nesse âmbito, anote-se que os índices, mormente o geográfico, como não são muito extensos, devem ser consultados com cuidado, como os autores mui avisadamente advertem nas Instruções, inclusive em relação às entradas: «Se o leitor procurar determinado nome […] e não o encontrar na ordem alfabética das entradas, não deve concluir apressadamente que ele não figura no Dicionário». Não encontrará, por exemplo, nem nos índices, o topónimo Cascais; mas isso não significa que, de Cascais, se não tenha falado das grutas de Alapraia ou das de S. Pedro do Estoril, referenciadas por estes topónimos.
Evitaram os autores esmiuçar assuntos polémicos ou entrar em grandes elucubrações que se não compadecem, na verdade, com o teor de um dicionário com estas características, até porque, para assuntos específicos, há a bibliografia que apontam (embora, neste âmbito, a ausência da menção aos volumes da Bibliografia Arqueológica Portuguesa elaborados por Eduardo Pires de Oliveira quiçá pudesse ter sido evitada, porque, queiramos ou não, ali está compendiado tudo o que se escreveu sobre Arqueologia em Portugal desde o século XVI até 1979); e, de facto, para cada concelho do País, temos, na quase totalidade, cartas arqueológicas editadas ao longo dos últimos trinta anos, como, de resto, os autores assinalam no final da Apresentação. Contudo, se, por vezes, se alude às campanhas de escavação efectuadas num sítio (Milreu, Conímbriga…), nem sempre tal acontece, como é o caso – que se estranha – da villa de S. Cucufate (Vila de Frades, Vidigueira), quiçá por modéstia de um dos coordenadores, que foi um dos seus responsáveis, tanto mais que nem sequer se indica, na bibliografia, a obra que dá conta desses resultados: Jorge de ALARCÃO, Robert ÉTIENNE e Françoise MAYET, Les Villas Romaines de S. Cucufate (Portugal), Paris, 1990. E, não tendo estado no espírito desta obra, a referência à existência de um museu de sítio ou de um centro interpretativo poderia também não ser despicienda; e essa reflexão ocorreu-me quando li as entradas «Conímbriga» e «Odrinhas», onde tal menção inexiste e onde os museus anexos assumem papel relevante.
No que concerne à bibliografia, num caso como este, de um dicionário que se pretende prático e acessível, terá sido sempre uma dor de cabeça para os autores tomarem decisões, sabendo, de antemão, quanto elas poderão criar susceptibilidades. Veja-se o caso de Balsa (p. 53): cita-se Mantas 2003, um texto inserido num amplo catálogo de síntese sobre a cidade, que só é referido porque esse texto vem lá; o trabalho pioneiro (em meu entender) de Jeannette Nolen (Cerâmicas e Vidros de Torre de Ares – Balsa, Lisboa, 1994) não é mencionado, como, em relação a todo o Algarve, o não é a obra de Maria Luísa E. V. Affonso dos Santos, Arqueologia Romana do Algarve (Lisboa, 1972). Não se trata, obviamente, de uma crítica; apenas de uma advertência ao leitor, porque ser exaustivo nesse domínio não esteve nos desígnios dos autores, que tiveram ante si a dificílima tarefa de, a todo o momento, tomarem uma decisão nem sempre não eriçada de espinhos.
E, já agora, só para dar um exemplo do tema ‘assunto polémico’ – ou que pode ser polémico, por haver diferentes opiniões – a que atrás aludi, referiria apenas a afirmação, exarada na p. 117, de que foi o arquitecto eminiense Caius Sevius Lupus quem «construiu o famoso farol romano da Corunha» e a ele também aí se atribui «mais do que provavelmente» a construção do forum de Aeminium. Trata-se, com efeito, de uma saudável suposição tanto num caso como noutro.
Quanto ao lapso Quinta do Marim por Quinta de Marim (p. 295-296), pesa-me ter sido eu quem está na sua origem; já por diversas vezes o corrigi, mas ainda não entrou no quotidiano essa correcção.
E porque se trata de Arqueologia, não há lugar para questões linguísticas, embora a elas se acene, no que concerne, nomeadamente, às línguas pré-romanas ou, concretamente, à língua dita «lusitana»: não há nenhum verbete sobre o assunto, tratado, no entanto, quando Raquel Vilaça se debruça sobre a Idade do Ferro (p. 181), aí referindo os locais onde existem inscrições nessa língua. Um aceno é feito também às gentilitates (p. 172), remetendo Jorge de Alarcão para a noção de linhagem, distinta de clã (p. 198). Cá está um dos casos que mereceu alusão, mas sobre o qual não era de adiantar – e não se adiantou –, porque se prende mais com a organização social e política daqueles tempos e por aí os autores não poderiam seguir, até por se ter em conta que, neste momento, precisamente no que concerne às gentilitates, os mais recentes achados e as novas interpretações que proporcionaram acabaram por trazer uma outra luz ao que se sabia ou, simplesmente, se suspeitava.
Enfim, como se vê, não obstante apenas Dicionário, a obra em apreço acaba por suscitar entusiasmo, vontade de mais saber. Compendiando o que já se conhece, abre pistas para melhor se compreender o valor de uma disciplina e se entender o Passado. E esse não deixará de ser – sem dúvida! – um dos méritos maiores do livro que, em tão boa hora, a Livraria Figueirinhas do Porto acedeu publicar: salientar a importância que tem a Arqueologia como escrínio da Memória antiga, no urgente cimentar de uma Identidade! Queiram ou não as vozes contrárias!

Publicado em Cyberjornal, edição de 6 de Fevereiro de 2013:

 

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