domingo, 17 de fevereiro de 2013

«Ravinas», de António Salvado – A arte de burilar as palavras


            Ainda que editado em Março de 2004, na Ulmeiro, não nos ficará mal revisitar o livro de António Salvado, Ravinas (ISBN: 972-706-370-5).
            Em primeiro lugar, porque há escritores – e o poeta albicastrense António Salvado é um deles – que mantêm uma actualidade flagrante, pois os pensamentos que as suas frases veiculam nos servem diariamente, nos incitam a melhor saborear a existência.
            Depois, porque Ravinas é um conjunto de 20 textos, de página e meia cada (excepto um, que tem duas e meia), em que nos delicia a arte de burilar as palavras. Ecos de uma África? Sim. A capa a tal nos induz. E é da guerra de África que, indirectamente, nos fala precisamente esse texto mais longo, do homem de «vestuário sujo e moído» que se senta em frente do stor, numa conversa fiada:
            «Já ouviu falar da guerra em que estamos? Somos todos, toda a gente anda na guerra, toda a gente está na guerra! Quem manda fazer a guerra dá cabo de nós; mata toda a gente como eu mato esta mosca».
            E o stor ouve tudo, dá cigarro, paga cerveja, «até que uma ternura súbita e pungente amendoou as lágrimas que» os seus olhos «começaram a verter» (p. 13).
            Não há datas. Não há identificados lugares. Apenas um existir por aí, sentindo nós que, de facto, o autor convoca aqui os trigais e o rubro das papoulas em que mergulhou; os olores das giestas e dos rosmaninhos em que, recreando-se, se deixou submergir; a «decoração natural e apaixonada de cada estação do ano» em que lhe aprouve sitiar-se (p. 18). Ou seja, Ravinas é, no fundo, essa comunhão íntima com a Natureza, com os seres que a povoam, ciente da efemeridade da vida, sim, mas também acalentando a esperança de que há sempre uma «estrela da tarde que não teme o crepúsculo» e a certeza de que, por mais que outrem o queira, «as estações do ano não aprisionam o tempo»! (p. 34).
            Um hino, pois, à Vida, estendido numa prosa poética que nos enleva e seduz.
            Daí, o não ser descabido revisitá-lo agora, quase nove anos passados…

Publicado em Cyberjornal, edição de 16-02-2013:
http://www.cyberjornal.net/index.php?option=com_content&task=view&id=17871&Itemid=30

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