quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Ele não vinha pescar

           Por um carreiro insuspeitado, eu já ouvira falar, mas não sabia que era por ali… Degraus a descer com cuidado, o mar azul hoje, mansinho, ondulação leve ao fundo, bem no fundo. No voo sereno das gaivotas, compassado, imagino, naquele pio suave e alegre, «eles não saibam que o sonho…»! – cântico emblemático, a transportar-me ao sol-pôr… Hoje, o Sol, de certeza, vai estar aqui bem alaranjado, disco enorme e lento, a levar sonhos, a despertar sonhos, na certeza de que, amanhã, redondo e quente, aparecerá do lado do Tejo, «ó Sol, sabes que me apetece aninhar-me em ti?»… São a pique as rochas. Um casal de pombos bravos esvoaça numa perseguição de beijos, no sonho de um ovo galado e de um novo piar de plumagem feia no refego escuso da falésia.
Era ali.
Junto de uma escarpa lisa, dois homens de maior idade haviam estendido as cordas, amarrado bem as ilhargas, olhando para o cimo (25 metros seriam, lisos)… Conseguiriam escalar. Era o seu sonho para este sábado de Inverno primaveril.
A poente, outra rocha a pique, magote de jovens. A Escola de Escalada da Guia em actividade plena, a explicar que chegar ao topo, pé aqui, pé acolá, na tenacidade, na autoconfiança… Um sonho atingível aquele cimo. Reluziam as argolas onde se deveriam amarrar… Escola de Escalada da Guia. Era ali!
Pouco antes de nós, pelos mesmos degraus a esconderem-se nas anfractuosidades da rocha, descera um jovem, mochila aos ombros. Sentara-se no bico dum dos blocos para ali tombados há muitas décadas. Poisara a mochila, olhara o mar, cruzara as pernas. Vai meditar – pensei. Que o ambiente se presta a um encontro consigo, no fim de uma semana frenética, a pesar os sonhos, agarrando uns, afastando outros – que há joio a separar do trigo… Ná!… Ali, afinal, o sonho dele era outro, chamava-se evasão… Vivia num palácio e sonhava com a choupana ou vivia na choupana e queria viver em palácio…
Rosa ficara para trás, a dado passo, numa intuição feminina:
– Eu bem me parecia – comentou. – Ele não vinha pescar, nem ler, nem deliciar-se com as escaladas… Que pena!…
Evolava-se fumo cinzento de um pedaço de papel prateado. Brilho de prata a desfazer-se em fumo. Viagem quiçá sem retorno; ou com mais retornos, mais retornos, a sonhos inacessíveis, desesperados – sem ninho de pombos bravos na anfractuosidade aconchegada da fraga...

                                               José d’Encarnação

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