Encenação de Carlos Avilez, tradução
de Fátima Vieira, dramaturgia de Miguel Graça, cenografia e figurinos de
Fernando Alvarez, musical original de Tiago Machado, coreografia de Natasha Tchitcherova.
Apoio de toda a habitual equipa do TEC. Interpretação
a cargo de elementos da companhia e de alunos ou antigos alunos da Escola
Profissional de Teatro de Cascais.
A discussão sobre o texto
Prestou-se
a discussão, ao longo dos tempos, a interpretação
do título original inglês «As you like it». Fátima Vieira justifica a opção por «Como vos aprouver» ‒ que, além do mais, se
reveste de mui vernácula roupagem – mas já Miguel Graça, em jeito de provocação , optou por «Como vocês gostam», no comentário
inserto na folha distribuída aos espectadores. ¿Ter-se-ia Shakespeare dirigido
aos leitores, como que a dizer-lhes «Aí têm, como é do vosso desejo», ou a fala
foi para os actores e encenadores «Façam como acharem melhor!»?
Cumpre
salientar, a este propósito, que dispomos, nos Textos de Apoio, de um excelente
ensaio, de 25 páginas, sem assinatura mas que se pressupõe ser da autoria de
Fátima Vieira, professora associada com agregação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde, no âmbito do Instituto de Estudos Ingleses, lecciona desde
1986 e onde se doutorou, em 1998, com uma tese sobre a obra de William Morris e
a tradição de literatura utópica
inglesa. Um ensaio em que, com erudição
e saber, trata do texto, das representações e das fontes; dos diferentes modos
de ‘ler’ esta peça; do retrato que o autor faz do mundo político, levando, por
exemplo, os seus personagens a refugiarem-se na floresta de Arden, sob a égide
benevolente do Duque Sénior, na busca de uma liberdade que a ordem imposta pelo
Duque Frederico lhes não permitia usufruir; da sexualidade e das convenções
sociais (o costume de as personagens se travestirem e o que isso queria significar);
da caracterização das personagens;
das canções e da tradução .
Congratulo-me, naturalmente, com o
facto de o TEC haver optado pela colaboração
com uma universidade para a fixação
do texto, que, diga-se, é realmente bonito de se ouvir, muito cuidado. Foram investigadores
do atrás referido Instituto que lançaram mãos à obra, «no âmbito de um projecto
de investigação apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia», iniciado em 1998,
e que «tem como objectivo principal a tradução
da obra dramática completa de Shakespeare e a sua divulgação
(com uma vertente de reflexão histórico-crítica) no mercado português».
Dir-se-á ainda que cada tradução ,
«embora sendo da respons abilidade do
membro do grupo que a assina, beneficia da discussão participada por todos os
membros», o que também é digno de registo.
A encenação
e os actores
Temos, pois, um texto muito bom.
Sobre a forma como ele nos é apresentado, escusado será dizer que, por mais
tratos que, lendo o texto, cada um de nós desse à imaginação
«como é eu apresentaria isto?...», dificilmente conseguiria lograr atingir (nunca
atingiria!) a genialidade que nos é mostrada no Mirita Casimiro.
Primeiro (não havendo, nesta sequência,
nenhuma ordem de importância relativa): mais uma vez se deve brindar com
entusiasmo ao espírito criativo de Fernando Alvarez. Se nos figurinos e no
guarda-roupa se revela o seu extraordinário bom gosto, a opção por a floresta nos ser minimalmente sugerida por
fios de nylon pendurados resultar muito bem e é, de facto, um verdadeiro
achado.
Temos depois a direcção de actores. Bárbara Branco revela-se, mais uma
vez, na sua juventude, bem promissora actriz: dicção
excelente, expressão natural e sempre ajustada a cada passo. Um nome a fixar. Os
parabéns a Carlos Avilez pela arguta formação
que lhe deu.
Todos vão bem, desde o nosso querido
Ruy de Carvalho, na veste de um Adão ancião, aos elementos que há muito
integram a Companhia, passando pelos jovens da Escola, um estabelecimento de
ensino que vai merecer – não tenho dúvida! – cada vez maior atenção , mormente tendo em conta a fama que goza junto
de instituições congéneres e universidades estrangeiras, onde os sues antigos
alunos depressa se evidenciam pela técnica, pela presença e pela experiência de
palco que os respons áveis da Escola
desde cedo lhes proporcionam obter. Registe-se, para que conste, a informação de Miguel Graça: «Dos 21 actores e actrizes que estão
em cena 15 formaram-se ou estão a formar-se na Escola Profissional de Teatro de
Cascais»!
Permita-se-me, todavia, que realce
Renato Godinho, cujo cresci mento no
TEC se tem revelado de espectáculo para espectáculo. Não creio sofrer contestação que Renato tem na figura do bobo Bitolas a sua melhor
interpretação de sempre. Encaixa às
mil maravilhas o seu perfil habitualmente gozão aos ademanes e aos chistes irónicos
e acutilantemente críticos de um bobo, realçado, de resto, pelo facto de Carlos
Avilez o ter posto a deslocar-se em cadeira de rodas (os bobos sofriam,
habitualmente, de corpóreas mazelas, eram anões ou aparentemente lerdos…). Inscreva-se
já o nome de Renato Godinho no rol dos actores a galardoar em 2018!
A cadeira de rodas e a interculturalidade
Esta referência à cadeira de rodas
leva-me a focar ainda um outro aspecto neste espectáculo: a interculturalidade,
tópico que sempre, aliás, preside às encenações de Avilez: adaptar aos nossos
dias cenas que originalmente se passam há muito tempo (a comédia As You Like It foi escrita, pensa-se, mesmo
no final do século XVI e supõe-se que representada pela primeira vez em 1603),
em contextos e ambientes bem diferentes dos da actualidade.
Assim, a cadeira de rodas é dos
nossos dias (oh se é!...); a moda de mulheres se vestirem de homens e
vice-versa, se constituía, outrora, como nos carnavais de sempre, mera
brincadeira, reveste-se, aqui, como algo de mais profundo: o natural reconhecimento
da homossexualidade.
Por outro lado, português que se
preze promove a interculturalidade. A palavra está hoje de moda; mas há muito
que nós a assumíamos e carlos Avilez não hesitou, neste caso, em pôr em lugar
de destaque, no final, um negro como sacerdote do Altíssimo, o sacerdote que
poderia abençoar os quatro casamentos (‘apraz-nos’ que os enredos acabem em
alegres casamentos, o de Rosalinda e Orlando, de Célia e Olívio, de Sílvio e
Febe, de Bitolas com Aurora), ainda que sejam, na peça, «relegados para um momento
posterior» a que já não assistimos.
É de norma
terminar a apreciação de um
espectáculo, quando dele se gostou e se considera válido, incitando o leitor a
ir ver. Creio, porém, que facilmente se depreenderá do que escrevi que posso
perfeitamente dispensar tal incitamento, pois, na verdade, esta interpretação do Como
Vos Aprouver ficará nos anais do Teatro nacional e, por isso, não se pode
mesmo perder!
José d’Encarnação
Publicado em Cyberjornal , edição
de 15-04-2018.
Júlia Franco
ResponderEliminarJá vi e vou voltar.
Renato Godinho tem o "seu papel". Excelente.
Dia 22 espero que a Universidade Sénior de Manique, onde dou aulas como voluntária, não perca o espetáculo.
O repto está lançado...