segunda-feira, 16 de abril de 2018

«Como Vos Aprouver», em cena no Mirita Casimiro

             Estreada a 27 de Março, vai estar em cena no Teatro Mirita Casimiro até 29 do corrente mês de Abril a peça «Como Vos Aprouver», de William Shakespeare, a 154ª produção do Teatro Experimental de Cascais, integrada na programação de Cascais 2018 Capital Europeia da Juventude.
            Encenação de Carlos Avilez, tradução de Fátima Vieira, dramaturgia de Miguel Graça, cenografia e figurinos de Fernando Alvarez, musical original de Tiago Machado, coreografia de Natasha Tchitcherova. Apoio de toda a habitual equipa do TEC. Interpretação a cargo de elementos da companhia e de alunos ou antigos alunos da Escola Profissional de Teatro de Cascais.

A discussão sobre o texto
            Prestou-se a discussão, ao longo dos tempos, a interpretação do título original inglês «As you like it». Fátima Vieira justifica a opção por «Como vos aprouver» ‒ que, além do mais, se reveste de mui vernácula roupagem – mas já Miguel Graça, em jeito de provocação, optou por «Como vocês gostam», no comentário inserto na folha distribuída aos espectadores. ¿Ter-se-ia Shakespeare dirigido aos leitores, como que a dizer-lhes «Aí têm, como é do vosso desejo», ou a fala foi para os actores e encenadores «Façam como acharem melhor!»?
            Cumpre salientar, a este propósito, que dispomos, nos Textos de Apoio, de um excelente ensaio, de 25 páginas, sem assinatura mas que se pressupõe ser da autoria de Fátima Vieira, professora associada com agregação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde, no âmbito do Instituto de Estudos Ingleses, lecciona desde 1986 e onde se doutorou, em 1998, com uma tese sobre a obra de William Morris e a tradição de literatura utópica inglesa. Um ensaio em que, com erudição e saber, trata do texto, das representações e das fontes; dos diferentes modos de ‘ler’ esta peça; do retrato que o autor faz do mundo político, levando, por exemplo, os seus personagens a refugiarem-se na floresta de Arden, sob a égide benevolente do Duque Sénior, na busca de uma liberdade que a ordem imposta pelo Duque Frederico lhes não permitia usufruir; da sexualidade e das convenções sociais (o costume de as personagens se travestirem e o que isso queria significar); da caracterização das personagens; das canções e da tradução.
            Congratulo-me, naturalmente, com o facto de o TEC haver optado pela colaboração com uma universidade para a fixação do texto, que, diga-se, é realmente bonito de se ouvir, muito cuidado. Foram investigadores do atrás referido Instituto que lançaram mãos à obra, «no âmbito de um projecto de investigação apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia», iniciado em 1998, e que «tem como objectivo principal a tradução da obra dramática completa de Shakespeare e a sua divulgação (com uma vertente de reflexão histórico-crítica) no mercado português». Dir-se-á ainda que cada tradução, «embora sendo da responsabilidade do membro do grupo que a assina, beneficia da discussão participada por todos os membros», o que também é digno de registo.

A encenação e os actores
            Temos, pois, um texto muito bom. Sobre a forma como ele nos é apresentado, escusado será dizer que, por mais tratos que, lendo o texto, cada um de nós desse à imaginação «como é eu apresentaria isto?...», dificilmente conseguiria lograr atingir (nunca atingiria!) a genialidade que nos é mostrada no Mirita Casimiro.
            Primeiro (não havendo, nesta sequência, nenhuma ordem de importância relativa): mais uma vez se deve brindar com entusiasmo ao espírito criativo de Fernando Alvarez. Se nos figurinos e no guarda-roupa se revela o seu extraordinário bom gosto, a opção por a floresta nos ser minimalmente sugerida por fios de nylon pendurados resultar muito bem e é, de facto, um verdadeiro achado.
            Temos depois a direcção de actores. Bárbara Branco revela-se, mais uma vez, na sua juventude, bem promissora actriz: dicção excelente, expressão natural e sempre ajustada a cada passo. Um nome a fixar. Os parabéns a Carlos Avilez pela arguta formação que lhe deu.
            Todos vão bem, desde o nosso querido Ruy de Carvalho, na veste de um Adão ancião, aos elementos que há muito integram a Companhia, passando pelos jovens da Escola, um estabelecimento de ensino que vai merecer – não tenho dúvida! – cada vez maior atenção, mormente tendo em conta a fama que goza junto de instituições congéneres e universidades estrangeiras, onde os sues antigos alunos depressa se evidenciam pela técnica, pela presença e pela experiência de palco que os responsáveis da Escola desde cedo lhes proporcionam obter. Registe-se, para que conste, a informação de Miguel Graça: «Dos 21 actores e actrizes que estão em cena 15 formaram-se ou estão a formar-se na Escola Profissional de Teatro de Cascais»!
            Permita-se-me, todavia, que realce Renato Godinho, cujo crescimento no TEC se tem revelado de espectáculo para espectáculo. Não creio sofrer contestação que Renato tem na figura do bobo Bitolas a sua melhor interpretação de sempre. Encaixa às mil maravilhas o seu perfil habitualmente gozão aos ademanes e aos chistes irónicos e acutilantemente críticos de um bobo, realçado, de resto, pelo facto de Carlos Avilez o ter posto a deslocar-se em cadeira de rodas (os bobos sofriam, habitualmente, de corpóreas mazelas, eram anões ou aparentemente lerdos…). Inscreva-se já o nome de Renato Godinho no rol dos actores a galardoar em 2018!

A cadeira de rodas e a interculturalidade
            Esta referência à cadeira de rodas leva-me a focar ainda um outro aspecto neste espectáculo: a interculturalidade, tópico que sempre, aliás, preside às encenações de Avilez: adaptar aos nossos dias cenas que originalmente se passam há muito tempo (a comédia As You Like It foi escrita, pensa-se, mesmo no final do século XVI e supõe-se que representada pela primeira vez em 1603), em contextos e ambientes bem diferentes dos da actualidade.
            Assim, a cadeira de rodas é dos nossos dias (oh se é!...); a moda de mulheres se vestirem de homens e vice-versa, se constituía, outrora, como nos carnavais de sempre, mera brincadeira, reveste-se, aqui, como algo de mais profundo: o natural reconhecimento da homossexualidade.
            Por outro lado, português que se preze promove a interculturalidade. A palavra está hoje de moda; mas há muito que nós a assumíamos e carlos Avilez não hesitou, neste caso, em pôr em lugar de destaque, no final, um negro como sacerdote do Altíssimo, o sacerdote que poderia abençoar os quatro casamentos (‘apraz-nos’ que os enredos acabem em alegres casamentos, o de Rosalinda e Orlando, de Célia e Olívio, de Sílvio e Febe, de Bitolas com Aurora), ainda que sejam, na peça, «relegados para um momento posterior» a que já não assistimos.
            É de norma terminar a apreciação de um espectáculo, quando dele se gostou e se considera válido, incitando o leitor a ir ver. Creio, porém, que facilmente se depreenderá do que escrevi que posso perfeitamente dispensar tal incitamento, pois, na verdade, esta interpretação do Como Vos Aprouver ficará nos anais do Teatro nacional e, por isso, não se pode mesmo perder!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 15-04-2018.

 

1 comentário:

  1. Júlia Franco
    Já vi e vou voltar.
    Renato Godinho tem o "seu papel". Excelente.
    Dia 22 espero que a Universidade Sénior de Manique, onde dou aulas como voluntária, não perca o espetáculo.
    O repto está lançado...

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