quinta-feira, 12 de abril de 2018

Distracções…

Era graciosa hortinha, que dava gosto ver. Um projecto camarário
ainda por concretizar obrigou ao seu imediato abandono.
Cresce a erva, suspira a estrelícia e... mais de dez anos passaram!
            Para aproveitar o abrigado logradouro do prédio, um dos vizinhos, ancião, decidiu utilizá-lo para pequena horta e, até, para algumas flores. A sua entretenha. O recanto, um mimo! Passaram os senhores da Câmara e ordenaram a imediata destruição de couves, alfaces, cebolas… que nesse espaço, por detrás dos prédios, ia ser feito um jardim. E o ancião, de lágrimas nos olhos, destruiu. Há dez anos. No lugar da inocente hortinha cresce agora a erva, há um pé de salsa aqui e ali, uma estrelícia tenta sobreviver… Do jardim camarário… nem o cheiro!...
            Distracções.
            Tinha a equipa de obras 5 pessoas. Uma sofreu um acidente, está de baixa; outra tem um reumático danado; as três restantes optaram por ir ao médico de família, que andavam mal da cabeça. Coisas da psiquiatria. O médico de família não podia passar baixa por essas coisas da cabeça, mas passou. Baixa prolongada. Distraiu-se. E os 5, uma pechincha a não desaproveitar, porque, pela ADSE, ganham mais de baixa que ao serviço! Não há equipa para obras? Que se danem!
            Excelente oportunidade, aquele espectáculo de lotação esgotada, 200 pessoas. Oferece-se cocktail de boas-vindas e, assim, dão-se a conhecer os nossos vinhos: tinto, branco, rosé. Distraíram-se, porém, os promotores. Para 200 pessoas, uma senhora só, por mais eficiente que seja, é pouco. Formaram-se filas. Rosé tem de ser bem fresco – e esqueceram-se de mais recipientes com gelo.
            No recanto do átrio espalharam-se três mesas de pé alto para os pratinhos dos salgados. Olha, é óptima para nos encostarmos à conversa! E as duas senhoras plantaram-se ao redor da mesa, acompanhadas por um cavalheiro que puxou do telemóvel e o pôs ao lado dos pratinhos, tranquilamente a ver as mensagens… As senhoras na conversa. E os convidados pediam licença para tirar um salgado. E as senhoras, concentradas na conversa e distraídas do cocktail para 200 pessoas, não arredaram pé, até que a porta do teatro abriu.
            Entre as mensagens que me pedem para divulgar há os call for papers. As revistas ou os organizadores de reuniões científicas utilizam a Internet para publicitarem as edições ou os temas das reuniões e a sua calendarização. Apelam, por isso, a quem se disponibilize com um artigo ou comunicação, o que, em inglês, se diz paper, «papel» – que é, aliás, cada vez menos papel e mais escritas no mundo digital.
            Já sei que, embora me dê ao trabalho de pôr no «assunto» o título certo e mude para português de gente tudo o que é «flyer», «call», «info sheet», «newsletter», «abstract», «website» and so on (que quer dizer: etc.), já sei que tenho de estar muito atento, pois é assaz frequente que amigos meus aproveitem a boleia do título e, até, mantendo o que lhes enviei, me escrevam a tratar de um assunto pessoal que nada tem a ver com o «subject» (leia-se «assunto») em epígrafe. Distracções! Ou será preguiça? Ou um viver bem apressado, não tenho tempo para nada, isto é um horror!...
            Confesso, porém, que pasmei outro dia. Já não tenho idade para pasmar; mas desta vez pasmei mesmo e até perguntei ao meu amigo se fora ele que escrevera. É que eu anunciara (também em título) um desses call for papers (claro, pus «chamada de colaborações»…); ¿ e não é que esse amigo, que até é licenciado há um ror de anos e ocupa cargo de responsabilidade, me respondeu assim:
            “José, agradeço .houve este ano enviar .conta comigo.um abraço”
            Tal e qual. Com os pontos onde estão e este «houve» que deve ser algo como «eu vou» disléxico!...
            Uma linha só e sem qualquer sentido. E para mim que nada tenho a ver com a revista anunciada!... Fiquei altamente preocupado, confesso.
            E distracções destas eu presencio às dezenas todos os dias.
            Onde é que vamos parar?
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Costa do Sol Jornal (Cascais), nº 229, 2018-04-11, p. 6.

4 comentários:

  1. Julia Fernandes 12/4 às 10:02

    Triste a história do velhinho e da horta. Há gente sem coração.

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  2. Maria David 12/4 às 16:57
    Bom artigo, como é habitual.Tudo automatizado, aliás cada vez se pensa menos, ouve menos, mas muito se fala... sem nexo.

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  3. Maria Isabel Sousa Pereira 13/4 às 10:20
    Tudo acaba vítima do descuido...

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  4. Fernanda Gonçalves
    domingo, 15 de Abril de 2018 00:14

    Meu caro amigo,
    Que maravilha, adorei os textos, tão reais e fantásticos. Parabéns pelos textos e por partilhar comigo a real sabedoria do escrever bem.
    Adorei a cruel realidade do exposto de forma tão sábia.
    Vou publicar.

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