segunda-feira, 30 de abril de 2018

Lisboa romana não cessa de nos surpreender!

            Foram as obras de ampliação do Metropolitano que proporcionaram a descoberta da spina do hipódromo romano, ou seja, da «espinha» mediana, em torno da qual se processavam as corridas de cavalos. Olisipo, a Lisboa romana, guindava-se, assim, ao escol das cidades que dispunham de um equipamento singular. A fazer jus ao que a tradição contava das éguas da Lusitânia, fecundadas pelo Vento, dizia-se, tal era a velocidade que logravam atingir. A fazer jus também ao muito célebre auriga lusitano, Caius Appuleius Diocles, que, tendo falecido com 32 anos, 7 meses e 23 dias, conquistou nas corridas de cavalos em Roma, conforme reza o seu epitáfio (CIL VI 10 048), 1462 vitórias, 861 segundos lugares, 576 vezes o 3º, uma vez o 4º e não ficou classificado em 1351, do total das 4251 competições em que participou. Que palmarés!
            Assinale-se, porém, que – ao contrário do que se supõe ter acontecido em épocas transactas – neste caso e nos que vão ser assinalados a seguir, foi possível contar com uma mudança de mentalidade por parte das entidades promotoras dos empreendimentos e por parte também do organismo oficial que tutela essas riquezas patrimoniais. Houve cedências de parte a parte, tendo em vista a preservação e a valorização de um património de memória que se compreendeu ser importante, até do ponto de vista económico.

O núcleo da Rua dos Correeiros
            Estava tentado a falar deste caso por palavras minhas. Creio, porém, que valerá a pena verificar como ele é abordado na respectiva página da Internet, porque – em palavras singelas – aí se dá conta do que, até para leigos, pode significar o subsolo desse edifício do Millennium bcp, situado «próximo do Arco da Rua Augusta, a ocupar quase por inteiro um quarteirão pombalino da baixa de Lisboa».
            Explicita-se:
            «Entre 1991 e 1995, no decorrer das obras de remodelação aí efectuadas, a perfuração do pavimento pôs a descoberto estruturas arqueológicas de civilizações que, ao longo dos tempos, habitaram Lisboa.
            Pelas suas características únicas – aí se podem percorrer 2500 anos da História de Lisboa – este espaço, agora designado Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (NARC), sendo um espaço do Millennium bcp, é também património da Cidade e mesmo do País, entendendo-se que, como tal, deve ser acessível ao público em geral».
            E informa-se que foi preocupação da Fundação Millennium bcp, responsável pela gestão do NARC e pela organização das visitas guiadas, editar um catálogo, em português e em inglês, e uma brochura, assim como apoiar a «edição de um estudo de carácter técnico e cientifico sobre o NARC, da autoria da Dra. Jacinta Bugalhão, responsável pela equipa de escavações arqueológicas».

A Casa Sommer
          Chamamos «Casa Sommer» ao Palácio do Conde de Coculim – edifício do século XVI, localizado no nº 40 da Rua Cais de Santarém, bem perto de Santa Apolónia, onde hoje se encontra o Hotel Eurostars Museum. E já vamos saber porque se chama Museum a um hotel. «Casa Sommer», porque, já no século XX, o palácio serviu de armazém de ferro, que viria a ser depois adquirido pela família Sommer para os escritórios da Cimentos de Leiria, comprado por António Champalimaud, na sequência do seu interesse pela indústria cimenteira.
            Desde 2004 que se sabia da existência de vestígios antigos no seu subsolo. Por isso, numa atitude que nunca será de mais realçar, os responsáveis pelo grupo hoteleiro espanhol Hotusa houveram por bem sentar-se à mesa das negociações com os seus arquitectos e com os arqueólogo, a fim de que o negócio «hotel» tivesse uma vertente «museu» incontestável, mantendo nas estruturas novas as antigas que nelas bem se pudessem enquadrar. E o resultado é excelente.
            Tive ocasião de visitar o Eurostars Museum no dia 14 de Março, guiado por Nuno Neto, da empresa Neoépica, responsável pelos trabalhos arqueológicos e consequente musealização do sítio. Ele e os seus mais directos colaboradores – Ricardo Ávila Ribeiro, Paulo Rebelo, Miguel Rocha – já haviam apresentado ao I Encontro de Arqueologia de Lisboa (Novembro de 2015) a comunicação «Dados preliminares de uma intervenção arqueológica nos antigos armazéns Sommer, Lisboa (2014-2015) – Três mil anos de história da cidade de Lisboa», que viria a ser publicada nas respectivas actas (p. 222-245); mas uma coisa é o que se ouve ou lê e outra o que nos é dado contemplar!
            Pasmei!
            Logo a um plano acima do nível da recepção, do lado direito, uma casa romana, de paredes com cerca de três metros de altura conservados, pintadas a fresco; no pavimento, um mosaico cujo motivo central é a deusa Vénus a descalçar a sandália (Fig. 1). Recuamos assim dois milénios e entramos de corpo inteiro no que é de mais vistoso e eloquente da época romana!
            O mosaico, apresentado na I Bienal de Arqueologia e História de Alter do Chão em Julho de 2016, foi publicado, na Turquia, nas respectivas actas: Ricardo Ávila Ribeiro, Vasco Noronha Vieira, Paulo Rebelo e Nuno Neto, «A Roman Mosaic Unearthed in Armazéns Sommer (Lisbon). Archaeology and Iconography», Journal of Mosaic Research, 10, 2017, p. 335-346. Aí se conclui que ele «reflecte fortes intercâmbios cosmopolitas e estilísticos entre a cidade de Olisipo e o resto do Império Romano», sendo assinaláveis «o seu elevado grau de conservação e a riqueza da sua decoração».
            Também se publicou (Ficheiro Epigráfico 164, 2018, inscrição nº 642 [acessível em: http://hdl.handle.net/10316/48110]) uma estela funerária romana, datável da 2ª metade do século I da nossa era, que se refere a uma menina de dois anos, cujo nome é etimologicamente grego; foi o pai que lhe preparou o sepulcro.
            As remodelações por que o espaço passou cortaram, por exemplo, a muralha do século IV, e esta cortara, por sua vez, casas romanas, tal como acontecera na cidade romana de Conimbriga, com o pormenor de, aqui, as paredes estarem pintadas a fresco de ambos os lados (Fig. 2)! Maravilha!
 
Um museu
            A zona central, de estar, do hotel, proporciona a observação, a nível do solo, dessas estruturas romanas, algumas datáveis do século I.
            Em plano superior, donde pode ver-se, em panorâmica, o conjunto arquitectónico (Fig. 3), foi colocada uma longa vitrina com os achados mais significativos (Fig. 4), a documentar o que foi a ocupação humana do sítio desde os tempos da Pré-história e, nomeadamente, da Idade do Bronze até ao século XIX e aos nossos dias: «Três mil anos de história», como atrás se assinalava.
            Localizado junto ao rio Tejo, numa área que desde sempre (ousaríamos dizer) servira para o comércio ligado à navegação, o edifício sofreu, naturalmente, com o terramoto de 1755 e desse momento há um testemunho que se me afigura notável. Notável em si e notável por se ter logrado encontrar. É que um dos comerciantes guardava as suas moedas num saco e esse montinho de numismas constitui, sem dúvida, um dos achados mais curiosos, porque, meio derretido pelo calor do incêndio que o tremor de terra provocou, ali se mostram as moedas agarradinhas umas às outras!... (Fig. 5).
            Depois, há uma sugestiva colecção de cachimbos de caulino, moedas, medalhas, crucifixos e anéis… A História esparramada em fragmentos pejados de eloquência...

A estela fenícia (Fig. 6)
          A estela, de 73 centímetros de altura, que ostenta uma inscrição em escrita fenícia, é unanimemente considerada uma das peças mais valiosas do espólio recolhido, por se tratar, de acordo com os investigadores que a estudaram, «a manifestação escrita mais antiga recuperada na Europa Ocidental». Datável do século VII a. C., é «a inscrição funerária de um indivíduo com possível nome local», como pode ler-se no artigo que os descobridores publicaram no volume 19, de 2016, p. 123-128, da Revista Portuguesa de Arqueologia, onde se afirma:
            «A existência de conhecedores da escrita fenícia e dos seus costumes epigráficos vem trazer luz sobre a introdução e desenvolvimento da própria escrita e os seus usos (especialmente os epigráficos) tanto na fachada atlântica peninsular como em toda a Península Ibérica (pois não estamos apenas perante a mais antiga amostra de escrita na zona, como também na presença de um dos mais antigos testemunhos de epigrafia monumental lapidar no Ocidente)».
            A importância do achado – que, apesar de já publicado numa revista de referência, não terá tido ainda a repercussão científica que merece – justifica a sessão que se programou para o próximo dia 5 de Maio deste ano de 2018, nas instalações do próprio Hotel Eurostars Museum, porque se lhe seguirá uma visita à colecção.
            Do programa constam, sob o título genérico «Um dos mais antigos testemunhos de escrita no Ocidente»: a notícia do achamento, por Nuno Neto e Paulo Rebelo; a contextualização paleográfica da estela e sua relevância no Ocidente europeu, pelo Professor José Angel Zamora López (da Escuela Española de Historia y Arqueología, de Roma); a contribuição do estudo da estela para o conhecimento da ocupação fenícia de Lisboa, pela Professora Elisa de Sousa (Faculdade de Letras de Lisboa).

Os merecidos aplausos
                Comecei por frisar que, finalmente, as entidades que têm por missão superintender na preservação da memória lograram entender-se, mercê de muito combate persistentemente levado a cabo pelos ‘chatos’ dos arqueólogos – para usar a terminologia recentemente adoptada por um deputado do CDS na Assembleia Regional dos Açores. Na verdade, «segundo o líder do CDS-PP na Assembleia Legislativa Regional, há arqueólogos a mais “para chatear o povo”». Na cidade Património Mundial, disse ainda, os arqueólogos só servem «para impedir as pessoas de construírem as suas casas». «Não precisamos desse tipo de gente que só coloca problemas» (Diário Insular, 19-4-2018, p. 7). Felizmente que os centristas do Continente não perfilharão tal ideologia.
            Também por isso me apraz divulgar, com louvor, a informação de que se teve conhecimento em meados deste mês de Abril: procedeu-se, em Lisboa, a uma escavação na Rua de São Julião nº 80 (a nascente da Rua da Prata), para que se pudesse verificar, de uma vez por todas, se o criptopórtico romano sempre se prolongava até aí, como se deduzia dos levantamentos antigos. E, sim, prolonga-se e até foi possível saber-se o que ele sustentava à superfície em época romana.
            E acrescentava quem me facultou esta notícia:
            Foi fantástico! E tão fantástico como essas descobertas foi o facto de esta intervenção ter existido graças à conciliação de muitas boas vontades, muitas colaborações e empenhos (dono de obra, empreiteiro, encarregado de obra, o director do Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, a directora da Unidade de Intervenção do Centro Histórico, o chefe da Divisão de Saneamento, a Empresa de Arqueologia que escavou até à cota de obra e depois associou a ela arqueólogos para que se pudesse prosseguir a escavação em profundidade com objectivos meramente científicos, a técnica que, na Direcção Geral do Património Cultural «foi abrindo portas e janelas», «todos concertados para que, de um dia para o outro, pudéssemos estar lá».
            Quando assim é – tal como ocorrera no caso dos Armazéns Sommer – afigura-se-me legítimo congratular-me vivamente! Congratulo-me!

                                                           José d’Encarnação
 
Fotografias gentilmente cedidas pela Neoépica.

Publicado em Cyberjornal, edição de 29-04-2018:

Fig. 1 - A casa romana, de paredes com frescos.
No mosaico, Vénus a descalçar a sandália.


Fig. 2 - A muralha do séc. IV, que cortou a parede de uma
casa. Assinalo a vermelho os vestígios dos frescos.
Fig. 3 - Panorâmica sobre os vestígios romanos,
vista do piso superior.

Fig. 4 - Em segundo plano, a extensa vitrina
onde cronologicamente se expõem os objectos mais significativos



Fig. 5 - As moedas do mercador, que o incêndio
subsequente ao terramoto de 1755 parcialmente derreteu.
Fig. 6 - A estela fenícia, o mais antigo vestígio da
escrita encontrado.
 

1 comentário:

  1. Maria Muñoz 1/5 às 7:41
    Estupendo reportaje de José d'Encarnação (30-4-2018) sobre los recientes hallazgos en Olisipo. Y no sólo romanos, también da foto y recuerdo de la inmediata presentación, el próximo 5 de mayo, en el nuevo hotel Eurostars Museum de Lisboa (del grupo español Hotusa), de la magnífica estela funeraria fenicia, de hacia el siglo VII a.C., que fue publicada no hace mucho.

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