domingo, 15 de abril de 2018

Dois concertos memoráveis

             Corro o risco, consciente, de usar um adjectivo passível de ser interpretado como lugar-comum. De facto, porém, tanto o concerto de Luísa Sobral, no Salão Preto e Prata do Casino Estoril, no passado dia 13, como o de Camané no dia seguinte no mesmo local merecem, de pleno direito, cada um no seu campo, tal adjectivação.
            Primou o de Luísa Sobral pelo intimismo, num palco onde o desenho de luzes jogou, na verdade, um papel de excelência, a sublinhar a envolvência suave e – ouso dizê-lo! – doce que a cantora quis imprimir à sua actuação. Foi o de Camané o de um ambiente de fado, invulgar no grande salão, habitualmente desprovido dessas características.

Luísa Sobral
            Entraram os músicos um a um e cumprimentaram o seu instrumento com uns acordes, num clima de jaze: foi João Salcedo para os teclados; pegou Mário Delgado na guitarra; sentou-se Carlos Miguel Antunes à bateria; e abraçou João Hasselberg o contrabaixo. Um foco para cada um, o resto do palco às escuras. Pausa para a entrada da artista. Veio, gravidíssima e descontraída, e entrou na música.
            Esse, o clima que perdurou: o da simplicidade, o da voz bem timbrada, o do virtuosismo dos executantes, o da conversa quase informal, com histórias de vida («Quando eu dancei esta e disse à minha mãe que tivera três contracções, ela entrou em pânico; desta vez só foram duas!...»). Encanta Luísa Sobral por este à-vontade com que está em palco, como, supomos, estará em sua casa. E os músicos deliciam-se, eles também, a acompanhá-la nesse jeito de quase confidência.
            Chamou o irmão (era inevitável!) e interpretaram («Achas que eles sabem o que a gente vai cantar?...» a canção com que arrecadaram o prémio do Eurofestival. Nada de bazófias ou de ares de pompa… «Olhem, tanto o João como o Carlos foram pais no mesmo dia e ambos de uma Maria. Eu, se este for rapariga será Maria também, se rapaz vamos chamar-lhe José. Não sei se terá a profissão que o João Monge deu a um José do seu «Jardim Roma»: carteirista!...». «Jardim Roma», um texto ímpar que é apresentado como «dedicado a todos os piratas e as princesas que brincam e que sempre brincaram nos jardins desse mundo a sonhar com o que seriam no futuro». Divertimo-nos. Com esse e com o «paspalhão», também de João Monge, a história da menina que se faz ao piso a um paspalhão, porque… «Já bebi pelo teu copo / Deixei os lábios marcados / Não entendeste o piropo / Que é coisa de namorados»… Assim. Uma delícia. Memorável. «E agora eu faço aquela cena de me ir embora e vocês continuam a bater palmas, a bater, e eu sou forçada a voltar». Voltou. Com o irmão, que imitou, com a voz, um trombone.
            Ah! Não poderia esquecer de assinalar que o atrás referido «clima de jaze» se manteve, porque, de quando em vez, um dos músicos saltava para a ribalta a solo, mostrando quanto sabia. E brilhava. E era saborosamente aplaudido.

Camané

            Deliciou-me também o concerto de Camané, pretexto para – além de nos cantar os êxitos maiores do seu repertório («Sei de um rio / Rio onde a própria mentira / Tem o sabor da verdade […] Meu amor, dá-me os teus lábios! Dá-me os lábios desse rio / Que nasceu na minha sede!») – nos encaminhar para o mundo antigo e venerando do Marceneiro, tema maior do seu último disco.
            Casa Camané, pelo timbre grave da sua voz e pela suavidade que empresta ao seu cantar, o fado doutras eras, clássico sem nunca cheirar a bafio (será sempre eterna a Casa da Mariquinhas!...), com as novas ressonâncias de agora.
            Sim, Camané trouxe fado genuíno. ¿ Mas quem ousaria falar deste concerto sem realçar o virtuosismo (cá está outra palavra delida, mas não tenho outra, caramba!) do José Manuel Neto a tratar por tu, extraordinariamente, a guitarra portuguesa, bem acompanhada sempre, nos seus desvarios deliciosamente excêntricos, pela viola de Pedro Castro e pela bem compassada sonoridade grave do contrabaixo de Paulo Vaz.
            Depois da tal cena da saída, com os fartos aplausos, de pé, a postularem encores (que é como quem diz, assim mais um ou dois fados para o deleite…), Camané voltou e quis homenagear João Ferreira-Rosa (que, aos 80 anos, em Setembro passado nos deixou), «chamando» de novo, a terminar, Alfredo Marceneiro e o seu «sonho dourado», o de qualquer fadista de raça: «Sonho que minha alma quer / Que é morrer cantando o fado / Nos braços de uma mulher»!
            E lá vai mais um lugar-comum a que não resisto: na noite do dia 14, sábado, o Fado morou no Estoril!
Agradecimento: fotografias gentilmente cedidas pelo Gabinete de Comunicação do Casino Estoril.
 
                                                           José d’Encarnação

Publicado em Cyberjornal, edição de 15-04-2018.

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